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È possível  que tenha havido algo à altura, mas é pouco provável que qualquer lugar do planeta tenha superado em graça, beleza e vibração
o Rio de Janeiro das décadas de 40, 50 e 60. Esses foram exatamente os anos que emolduraram a juventude de Carlos Novo de Niemeyer, o Carlinhos, apelido que ele detestava, ou Nini para seus colegas do “Clube dos Cafajestes” e outros amigos muito íntimos. Sempre bronzeado, com porte atlético e pinta de galã que lhe renderam até testes e cenas para filmes de cinema, incluindo algumas dirigidas por seu amigo Orson Welles, Carlinhos foi construindo uma daquelas biografias que nos dias de hoje soam até fantasiosas de tão improváveis. Piloto de aviões militares e primeiro tenente da Aeronáutica, lutador de jiu-jítsu ligado à família Gracie, namorado de Carmen Miranda, playboy, garoto de praia e produtor de cinema parceiro de Jean Manzon.

Apesar da amplitude de sua trajetória de vida, é difícil não associar a memória de Carlos à sua mais conhecida e longeva obra: o Canal 100. Numa época em que as emissoras de TV ainda engatinhavam e  boa parte da informação audiovisual que circulava pelo País transitava pelas salas de cinema, havia uma lei obrigando os exibidores a apresentar um noticiário produzido no Brasil antes dos filmes. Inconformado com o tom formal e oficialesco das produções da época, Carlinhos resolveu partir para a produção de algo que pudesse deixar de ser um fardo na vida dos cinéfilos e passasse a ser algo desejado e admirado.

E ele conseguiu. Captados com câmeras de cinema, os programas semanais do Canal 100 revolucionaram o que se conhecia até então como a imagética do futebol brasileiro. As cenas majestosas, os closes de torcedores se contorcendo em ansiedade, os takes em câmera lenta filmados no gramado do Maracanã e a inesquecível música que embalava os lances (uma versão belíssima do samba de Luis Bandeira “Na Cadência do Samba”) emocionavam até o mais desencanado dos indiferentes ao ludopédio.

E não ficava nisso. De 1959 a 1986, o Canal 100 conseguiu registrar desde visitas de autoridades e artistas famosos ao País até o surgimento do surfe no Brasil nas águas da praia do Arpoador. Desde o avô do MMA, os famosos encontros de vale-tudo, até a cobertura de várias Copas do Mundo, iniciando pela de 66 na gelada Inglaterra e passado pelo inesquecível e “caliente” massacre brasileiro no México em 70. Tudo impecavelmente capturado em película pela aguerrida e raçuda equipe de cinegrafistas canarinhos, com destaque para o grande Chico Torturra, que, além de cunhado de Nelson Rodrigues, viria a ser avô do jornalista Bruno Torturra. E já que falamos em Nelson, vale reproduzir aqui algumas linhas escritas por ele sobre o assunto em tela: “Foi a equipe do Canal 100 que inventou uma nova distância entre o torcedor e o craque, entre o torcedor e o jogo, grandes mitos do nosso futebol, em dimensão miguelangesca, em plena cólera do gol. Suas coxas plásticas, elásticas enchendo a tela. Tudo o que o futebol brasileiro possa ter de lírico, dramático, patético, delirante.”

Finalmente uma das mais preciosas coleções da tão judiada memória brasileira está sendo compartilhada com o público. Uma exposição sobre o Canal 100 está aberta até 29 de março no Espaço Tom Jobim, em pleno Jardim Botânico. Nada mais carioca para celebrar a obra e a memória daquele que era considerado o sujeito mais parecido com o estereótipo que o imaginário coletivo parece associar a essa simpática designação dos cidadãos da Guanabara.

Além da exposição, há um bom livro à venda com imagens belíssimas e um dvd com episódios inteiros do cinejornal. Relíquia rara na qual se pode até ouvir, pasmem, Cid Moreira sendo lançado para sua interminável carreira na locução. O simpático site www.canal100.com.br também oferece bons antepastos para o banquete do livro e da mostra. Vá ver.

A coluna de Paulo Lima, fundador da editora Trip, é publicada quinzenalmente
Foto: ARQUIVO CANAL 100