S.M.F., 27 anos, foi convidada a trabalhar em São Paulo como empregada doméstica, em 1997. A curitibana, mãe de dois filhos, saiu do Paraná sem um tostão no bolso acreditando que ganharia algum dinheiro para voltar à terra natal um pouco menos pobre. Mas a viagem quase não teve volta. O convite era apenas o golpe de uma quadrilha que obrigou S. a roubar 30 CDs numa loja de departamento. “Eu era menina, tinha a cabeça fraca. Hoje me arrependo”, diz. Marinheira de primeira viagem, foi descoberta pelos seguranças da loja. “Eles chamaram a polícia e fiquei presa por três meses em São Paulo aguardando julgamento”, conta. Para a sorte de S., o processo foi transferido para Curitiba, onde um juiz entendeu que ela não representava perigo para a sociedade. Ou seja, nada justificaria seu isolamento atrás das grades. Condenada a prestação de serviços à comunidade durante dois anos, S. diz que ganhou “uma nova vida depois de conhecer o inferno”. A Central de Penas Alternativas intermediou uma vaga de faxineira num hospital nos finais de semana. Final feliz: pelos bons serviços prestados durante o cumprimento da pena, ela foi contratada. Hoje S. tem carteira assinada e sustenta seus filhos. Por pouco, aquela jovem de “cabeça fraca”, que cometeu um pequeno delito, não foi parar no já superlotado sistema penitenciário brasileiro. “A prisão foi a pior coisa da minha vida. Se eu tivesse ficado lá, não sei o que seria de mim”, diz.

Se tivesse continuado na cadeia, provavelmente S. voltaria a cometer crimes – a reincidência dos réus de regime fechado é de quase 50%. O juiz responsável pela “nova vida” de S. é Rogério Etzel, 35 anos, nove deles na magistratura. Ele está à frente da Central de Penas Alternativas de Curitiba desde sua criação, em 1997. “Faço de tudo para não mandar alguém para o sistema penitenciário. Eles entram alunos do crime e saem professores”, diz o juiz, que comanda quatro assistentes sociais, duas psicólogas, dez estagiários e um cartório com seis funcionários. Esta equipe acompanha os passos de réus primários que prestam serviços à comunidade e capta vagas de emprego e bolsas para a alfabetização e profissionalização dos condenados. A central, criada por desembargadores do Tribunal de Justiça do Paraná, virou modelo para outros Estados e até para o Ministério da Justiça, que implantou, em maio de 2000, a Central Nacional de Apoio e Acompanhamento das Penas Alternativas (Cenapa). O programa federal possui verba de R$ 2,8 milhões e, segundo sua coordenadora, Vera Muller, tem a pretensão de ampliar a aplicação de penas alternativas: “É impossível fiscalizar os presos e por isso não há como saber se eles estão ou não fazendo o que devem. Com as centrais é diferente. Os assistentes sociais ficam no pé deles”, afirma Vera, que já ajudou na criação de 18 centrais no País. “Meu trabalho é tentar mudar a mentalidade dos juízes. Queremos que eles encaminhem mais processos de delitos leves para as centrais”, explica.

Mais barato – No Brasil, só 3% dos condenados cumprem penas alternativas, um número muito baixo se comparado aos Estados Unidos (36%) e à Europa (46%). Mas a estatística mais convincente para que se amplie este tipo de condenação é a que trata dos índices de reincidência: de acordo com a Cenapa, apenas 12% dos réus voltam ao mundo do crime. Há também a justificativa econômica. Os custos para se manter um preso no Brasil é, em média, de R$ 700. Vigiado longe das grades, um condenado adulto custa R$ 52 e um menor, R$ 49. Ainda segundo a Cenapa, cerca de 70% dos réus cometeram delitos leves, que justificam a adoção de pena alternativa.

A maioria destes delitos pode enquadrar qualquer indivíduo com bons antecedentes: são acidentes de trânsito, uso de drogas, estelionato, furto, porte ilegal de armas, lesão corporal leve. A opção pelo não encarceramento só é facilitada pelo Código Penal se o crime foi cometido sem violência. O cálculo da prestação de serviço é feito à razão de uma hora de trabalho para cada dia que se cumpriria na cadeia. “Assim eles continuam mantendo o convívio familiar e social, o que facilita a sua reintegração. Além disso, sua força de trabalho gera benefícios a toda sociedade”, explica o juiz Rogério Etzel, que de 1997 para cá já beneficiou sete mil pessoas. Mais de 1.200 delas trabalham em hospitais, escolas, albergues. O empenho de sua equipe rendeu o cadastro de 200 instituições. Algumas chegam a oferecer 40 vagas para os condenados, um número alto se comparado a São Paulo, por exemplo, onde a Secretaria de Administração Penitenciária possui 3.700 vagas e apenas 844 delas ocupadas. “Só há boas razões para não prender. Quem fica aguardando julgamento preso e depois vem para a central já chega aqui contaminado. A reincidência é maior”, diz o juiz.

Besteira – L.R., 21 anos, não quis nem pensar na hipótese de ficar no xadrez. Tímido, falando com a voz rouca e olhando para o chão, ele conta que foi pego em flagrante portando um revólver calibre 38, no final do ano passado. “Fiz uma besteira. Eu jamais atiraria em alguém”, garante. Solteiro e com o segundo grau incompleto, L. mora na periferia da cidade com o pai, pedreiro, e a mãe, dona-de-casa. Fazendo bico como carregador do Ceasa, ao final do dia as gorjetas somam de R$ 10 a R$ 15. “A cadeia seria o fim porque minha mãe precisa do meu dinheiro”, diz. Mas L. teve seu processo suspenso por dois anos. Neste período, prestará serviços. É a chamada medida alternativa, pela qual o réu pode escolher entre deixar o processo correr para provar sua inocência ou suspendê-lo e não sair mais da linha. L. diz que vai cumprir à risca as ordens do juiz, entre elas terminar os estudos com a bolsa oferecida pela central. “Melhor do que ser preso”, diz. Quem vai saber se ele está ou não andando dentro da lei é a equipe da central, acompanhando os seus passos.

Mas os juízes não confiam na aplicação das penas alternativas e preferem encarcerar até mesmo pessoas como L.R. Segundo o Departamento Penitenciário Nacional, o Brasil tem 213.119 presos, 57.775 deles recolhidos em delegacias de polícia e muitos com as penas vencidas. Destes, 45 mil poderiam desinchar o sistema penitenciário. Vários Estados mantêm presos, durante meses, réus que ainda aguardam julgamento, como é o caso do Pará, onde 73% dos detentos estão nesta condição. Com J. M. S., 47 anos, aconteceu o contrário. Não foi preciso cumprir integralmente os dois anos de condenação para ficar livre e levar uma vida normal. Ou quase isso. Depois de um mês prestando serviços como segurança num hospital, ele foi contratado e agora, o que fazia sem ganhar um tostão, lhe rende o salário de R$ 510. Ex-agente penitenciário, ele não conta nem sob tortura qual foi o crime que cometeu. “Não falo, não. Ainda tenho muita vergonha do que fiz”, diz.

O ministro da Justiça, José Gregori, acha que “as penitenciárias devem acolher somente os que oferecem riscos e cometem delitos graves”. No entanto, as ações de seu próprio Ministério não estão coerentes com esta política. Afinal, estão sendo construídos 125 novos presídios no País. Do orçamento do Departamento Penitenciário Nacional para este ano, 87% dos R$ 224 milhões vão para a ampliação de vagas nas cadeias, que têm déficit de 65 mil. Se mandar fazer um levantamento, certamente Gregori vai constatar que muitos dos presos cometeram delitos leves.