Em 1998, Milene Silva Souza passou no vestibular de medicina na Universidade Estácio de Sá, no Rio de Janeiro. A dificuldade para entrar na instituição nem de longe é parecida com a existente nas universidades federais. A concorrência é bem menor. Mas, facilmente, Milene conseguiu no ano seguinte sua transferência para a Universidade Federal do Ceará (UFC). Ali, no vestibular de 2000, 34.541 candidatos saíram em busca de 3.585 vagas. Milene, que entrou pela porta dos fundos, é filha do deputado federal Marcelo Teixeira (PMDB-CE). Ela obteve o direito de se transferir para a UFC graças a uma liminar dada pelo juiz Abdias Oliveira. Para justificar o pedido, alegou ser secretária parlamentar da Assembléia Legislativa do Ceará, segundo documento fornecido pela UFC. Procurada por ISTOÉ, não quis falar: “Não vou comentar esse assunto.” Seu próprio pai, no entanto, a desmentiu: “Ela não trabalha lá, não. Negativo. Deve ter algo errado aí”, atestou o deputado.

Alegações semelhantes à de Milene foram feitas por centenas de parentes de políticos e funcionários públicos para driblar o vestibular da Universidade Federal do Ceará e também da Escola de Medicina da Santa Casa de Vitória (Emescam), no Espírito Santo. A estratégia é simples: famílias com recursos mandam seus filhos para outros Estados, onde fazem o vestibular em escolas menos concorridas e até em instituições de conduta duvidosa, como a Universidade Iguaçu (Unig), de Nova Iguaçu (RJ), envolvida em denúncias de venda de diplomas e com vários de seus cursos sob ameaça de fechamento pelo MEC. Quem pode, vai mais longe. Matricula-se em faculdades de países como Cuba, Bolívia e Paraguai, onde não existem vestibulares, e depois reivindica a transferência. Com influência política, os estudantes conseguem indicações para empregos em órgãos públicos em seus Estados – quase sempre, de fachada, só para ter uma justificativa. Depois, contratam um bom advogado para mostrar à Justiça a necessidade de o filho retornar à cidade natal a fim de trabalhar e ficar ao lado dos pais, geralmente caracterizados como velhos e doentes. Grande parte desses alunos nem chega a estudar nas faculdades onde conseguiu o ingresso pelas vias normais.

No Ceará, foram registradas transferências de universidades cariocas como a Gama Filho, Unigranrio e Severino Sombra, de Vassouras, além da Unig e Estácio de Sá. Para a Santa Casa de Vitória transferiram-se pelo menos 11 estudantes da Unig. A UFC recebe também – não se sabe exatamente a razão – muitas transferências de escolas federais de Estados vizinhos. Somente da Universidade Federal da Paraíba foram 66 casos. Esses alunos não passam pelo processo de seleção para ocupar vagas disponíveis. Entre aqueles que trocaram a fluminense Unig pela UFC estão Marinaldo Cavalcanti e Melo Junior, que afirmou ser parente do governandor do Ceará, Tasso Jereissati – “embora distante” –, e Shirley Kelly Bede, irmã da jogadora de vôlei de praia Shelda. Para conseguir a transferência, Marinaldo disse ser auxiliar administrativo da Prefeitura de Pacajus, a 50 quilômetros de Fortaleza. Marinaldo não foi encontrado por ISTOÉ na prefeitura. No susposto local de trabalho, ninguém sabia de seu paradeiro. “Eu dou plantão às vezes nos finais de semana”, esquivou-se, numa tarde de sexta-feira, ao sair da aula. Marinaldo foi reprovado no primeiro semestre em disciplinas consideradas básicas, mas, com um mandado judicial, foi matriculado na fase seguinte. Não por acaso, os transferidos constituem o maior número de alunos reprovados no curso de medicina da UFC.

Favores – Shirley, a irmã da jogadora Shelda, afirmou à Justiça que trabalhava como secretária parlamentar da Assembléia Legislativa do Ceará. Procurada, não quis falar. A reportagem também tentou encontrar Cristiano Araújo Costa, ex-Estácio de Sá, no Rio, que trabalharia na Rede Ferroviária Federal. Funcionários informaram que, lá, não havia ninguém com esse nome. “Na maioria dos casos, o que prevaleceu foi a amizade. Fortaleza ainda é muito provinciana e aqui impera a troca de favores e o tráfico de influência”, critica o presidente do Centro Acadêmico de Medicina da UFC, João Flávio Nogueira Júnior. Nem a família do líder estudantil dispensa tal benesse. “O João não pode falar muito porque o irmão dele também é um dos transferidos”, atacou Érico Dantas Diógenes, outro estudante de medicina transferido da Unig para a UFC. João Flávio, porém, não aprova a decisão do irmão – Daniel –, que veio da Faculdade de Medicina Osvaldo Aranha, também no Rio. “Três anos antes eu já tinha posições e ações contrárias a essas transferências. Falei com meu irmão, mas não adiantou. Mas se alguém tem um irmão criminoso, não vai ser criminoso também por causa disso”, rebate o dirigente estudantil.

Uma lei federal, de 1997, garante o direito de transferência de alunos entre “instituições vinculadas a qualquer sistema de ensino, em qualquer época do ano e independente da existência de vaga”, quando se tratar “de servidor público federal civil ou militar estudante, ou seu dependente estudante, se requerida em razão de comprovada remoção ou transferência de ofício”. O direito não é garantido para servidores estaduais e municipais, mas juízes têm adotado o princípio da isonomia. Também não seriam beneficiados funcionários comissionados e em cargos de confiança. Mesmo assim, pessoas que, suspostamente, trabalhariam na Assembléia Legislativa, em câmaras municipais e prefeituras se transferiram para a UFC e para a Santa Casa de Vitória, amparadas por liminares. “Como essas pessoas podem trabalhar em órgãos públicos e estudar se o curso de medicina exige período integral?”, pergunta Yaci Mendonça, coordenadora do curso de medicina da UFC. Ela cita casos como o do estudante Roberto Aires Montenegro, transferido em 1994, que afirmou trabalhar na Prefeitura de Juazeiro do Norte, a exatos 521 quilômetros de Fortaleza.

Yaci protesta ainda contra o Judiciário que estipulou multas de até R$ 5 mil ao dia para a UFC, caso não aceitasse as matrículas dos transferidos. “Não posso negar um direito constitucional diante do argumento de que a universidade não tem condições de receber um aluno transferido, porque o governo não lhe dá condições materiais suficientes para tanto”, justifica o juiz Ricardo Porto, da 8ª Vara da Justiça Federal do Ceará, que atendeu a seis pedidos. Ressaltando não poder emitir posições sobre processos em tramitação, Porto disse que só dá parecer favorável em casos de transferência de instituição pública para pública e de instituição privada para privada. “Quando atendo, é sempre para faculdades congêneres, salvo se no local não houver uma faculdade similar com aquele curso. Também não concedo em razão de nomeação política, pois entendo ser um fundamento precário”, explica. Segundo ele, a omissão da lei, em determinadas situações, é a causa das ações na Justiça.

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Carentes – Desde 1989, 372 processos de transferências foram registrados na UFC, 40% deles para medicina. Dos mil alunos do curso, 10% são transferidos. Em Vitória, foram 34 ações judiciais, desde 1997. As justificativas para os pedidos surpreendem. Para deixar o Maranhão rumo à UFC, uma estudante disse que precisava ficar ao lado do irmão, em Fortaleza, porque ele usava drogas e o pai viajava muito. Outro mudou da Unig para a UFC porque “sentia saudades do pai”, que estava na capital cearense. Na Emescam – onde o vestibular tem em média 19 candidatos por vaga – não é diferente. A violência urbana foi um dos argumentos usados pelas irmãs Shananda, 20, e Shimena Cabral, 21, no pedido de transferência da Unig. A petição dizia que elas “ainda são duas meninas, à mercê de uma cidade violenta como o Rio”. Outra justificativa foi a nomeação do pai como assessor de um vereador na cidade de Aracruz (ES). O juiz Robson Albanez, da 8ª Vara Cível, mandou fazer a matrícula, “tornando-as alunas regulares do curso de medicina até a graduação final e formatura”. O despacho não dizia sequer em qual ano elas deveriam ser matriculadas. A escola foi obrigada a aceitar as duas no meio do período escolar, em 2000.

O caminho traçado pelas irmãs Cabral foi seguido por Regiane Nascimento, vinda também da Unig para a Emescam em 2000. Regiane é filha do deputado estadual capixaba Luiz Pereira do Nascimento (PFL). Na prova de seleção para transferência – que poucos fazem –, ela foi eliminada no teste de múltipla escolha. Ficou no 43º lugar entre 48 candidatos. Havia 13 vagas para transferência. Reprovada, recorreu à Justiça. O próprio pai de Regiane entrou com a ação. A petição lembrava um pedido de asilo: “Em virtude da situação inflacionária pela qual passa o País, em total disparate com o reajuste financeiro dos vencimentos de seus funcionários, hoje, tornou-se também inviável financeiramente a permanência da postulante no Rio de Janeiro”, justificou o deputado. A irmã de Regiane, Renatha, já havia pedido transferência no ano anterior, da mesma Unig. Na ocasião, o argumento foi a eleição do pai. Como ele morava em São Gabriel da Palha, a 203 quilômetros de Vitória, a mudança para a capital teria inviabilizado os estudos da filha no Rio. Mas o parlamentar não é exatamente um descamisado. É médico, foi prefeito de São Gabriel da Palha até 1996 e depois diretor do hospital da cidade. Renatha também não passou na prova de transferência, mas conseguiu liminar garantindo a matrícula. Valéria Nascimento, mãe de Regiane e Renatha, defendeu as duas. “Se fosse uma coisa ilegal, a faculdade não teria aceito.”

CPI – A Bolívia também tem mandado estudantes para a Emescam. No ano passado, o deputado Magno Malta (PTB-ES) contratou a estudante de medicina Sarah Bourguignon Almeida, da Universidade Privada Cosmos, de Cochabamba, para “ficar à disposição” em seu escritório, em Vila Velha. Sarah pediu transferência para a Emescam, mas a escola indeferiu o pedido. Ela entrou com ação na Justiça, afirmando ter gastos elevados em dólar e dificuldades com a língua e a cultura bolivianas. Detalhe: na época do pedido, já cursava o quarto ano. O juiz Maurício Rangel acatou os argumentos e Sarah foi matriculada. A decisão foi o estopim para o protesto dos outros alunos. Eles têm organizado passeatas e pedem uma CPI das liminares. “Hoje, não há lugar para sentar na classe”, reclama Janderson Almeida, presidente do Centro Acadêmico Aloísio Lima. Em Vitória, a maioria das liminares foi concedida pelo juiz Robson Albanez, que não falou com a reportagem.

Quando assumiu o cargo em janeiro, o diretor da Santa Casa, Nilo Vieira, recebeu, logo nos dez primeiros dias, cerca de 50 pedidos para “dar um “jeitinho” em matrículas. “Os pedidos vieram de pessoas influentes. Recebi médicos, deputados estaduais e federais. Eles queriam facilidades na seleção e em transferências e até matrículas sem prova”, revela Vieira. O festival de liminares resulta em classes com elevado número de alunos. “Imagine uma enfermaria com 30 leitos. Cada aluno cuida de seu paciente, durante um período. Um belo dia chegam 35 ou 40 alunos em vez dos 30 normais. Os novos ficam na carona dos outros”, diz Vieira. Essas transferências não contribuem para a melhoria do ensino e comprometem a imagem de cursos considerados sérios. A pressão de estudantes na UFC, recentemente, ajudou a fazer com que seis novos pedidos de transferência fossem indeferidos. Mas a porta dos fundos ainda continua aberta.


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