A intenção do diretor australiano Baz Luhrmann é muito clara em relação a Moulin Rouge – amor em vermelho (Moulin Rouge – love in red, Austrália/Estados Unidos, 2001), cartaz nacional na sexta-feira 24. Desde os primeiros minutos, ele está dizendo para o espectador que é um filme para se amar ou odiar, sem meio termo. Logo na abertura, um maestro careca e ensandecido rege a famosa vinheta da Twentieth Century Fox, cujo logotipo vai ganhando uma moldura decorada com uma cortininha de teatro. De repente, ouve-se The sound of music, tema de A noviça rebelde, e a câmera vagarosamente vai entrando pela moldura até focar um clown sobre um telhado cantando Nature boy. Deste momento em diante, Luhrmann joga a platéia num turbilhão tal de sensações, emoções, vibrações, cores, música e loucura que é impossível alguém ficar apático diante da produção que provocou divisões raivosas à época de sua exibição no Festival Internacional do Filme de Cannes, em maio passado.

Excêntrico, divertido, terno, apaixonante e com uma trilha sonora tecendo imagens arrebatadoras, Moulin Rouge fecha um ciclo na carreira do cineasta – uma trilogia por ele chamada de “cortina vermelha”, ou seja, o cinema teatral, iniciado com Vem dançar comigo (1992) e Romeu + Julieta (1996). Neste terceiro trabalho, Luhrmann coloca seus personagens na esfuziante Paris de 1900, quando a famosa casa de espetáculos Moulin Rouge, instalada no centro do bairro boêmio de Montmartre, era o ponto de convergência de ricos, poderosos e jovens bonitos, mas pobretões. Guardadas as devidas proporções, semelhante ao que foram o Studio 54 na Nova York dos anos 70 e o Madame Satã, na década de 80, em São Paulo. No burburinho da vizinhança, que a câmera alucinante leva o espectador a conhecer em tomadas de velocidade de Fórmula 1, instala-se num hotel de baixa categoria o inglês Christian – papel do talentoso Ewan McGregor, de Trainspotting e Star wars: episódio 1 – a ameaça fantasma –, jovem escritor que chega a Paris cheio de sonhos e ideais sem imaginar a teia de prazer e dor que o enredaria.

No cerne do furacão está a bela e sedutora Satine, a cortesã mais famosa da cidade, estrela número 1 do Moulin Rouge, interpretada pela ex-senhora Tom Cruise, Nicole Kidman, em plena maturidade artística, apesar dos ligeiros exageros que anteriormente Stanley Kubrick havia aparado em De olhos bem fechados. É por ela que Christian mergulha numa paixão sem limites, misturando-a à sua arte e à deliciosa insensatez da juventude. Pobre Christian, mal sabia a tragédia na qual se meteria e que ele narra logo no início do filme. Recém-chegado à Cidade Luz, o escritor conhece uma trupe com sonhos tão revolucionários quanto os seus. Comandando esta turma está Toulouse-Lautrec, aqui transformado em dramaturgo, mas com os mesmos trejeitos e determinação do famoso pintor das dançarinas de can-can que adorava retratar o colorido do submundo de Paris. Lautrec ganhou vida na pele do divertido John Leguizamo, de Para Wong Foo, obrigada por tudo, Julie Newmar. Ele está escrevendo um musical, mas não encontra o ponto de apoio, até que Christian surge para dar o mote e o arremate.

Trunfo – Ganha força neste encontro o desfile de canções selecionadas e lapidadas sob a lupa de um ourives e que se ouvirá até o final da fita. São músicas que muita gente conhece, mas talvez nunca tenha percebido suas forças dramáticas. Todas ganharam novos arranjos e todas falam de amor. Quem já ouviu Your song, uma chatice melosa na voz de seu autor Elton John, ou em ritmo mais acelerado e não menos chato na de Billy Paul, não imaginava a beleza escondida e revelada na interpretação surpreendente de Ewan McGregor. Um outro trunfo é a maneira divertidíssima ou emocionante como se encaixam os medleys. Numa das cenas mais delirantes, Satine reanima a senilidade dos senhores do Moulin Rouge na temperatura de um show dos Rolling Stones cantando Diamonds are girl’s best friends – eternizado por Marilyn Monroe no filme Os homens preferem as loiras –, emendada a Material girl, de Madonna. As letras dizem tudo e, na platéia, o mau e riquíssimo duque Worcester (Richard Roxburgh) entende o recado. Antes mesmo de conhecer sua futura paixão, Christian já ganhou um inimigo.

Como se vê, a história central não difere muito da de outras centenas de enredos românticos. Na verdade, o que importa é a maneira como Baz Luhrmann conta esta saga de amor desenhando uma luxuriante ópera pop com cenários beirando o kitsch, mas cheios de referências de época, artísticas e cinematográficas. Vêem-se memórias de Gilda, Cabaret e O anjo azul misturadas nos penteados e nas mais de 400 roupas desenhadas para a linha de frente do elenco. Os figurinos, inclusive, inspiraram a nova coleção de Dior. No formato, o filme lembra muito O fundo do coração, que quase levou Francis Ford Coppola à falência, não foi compreendido pelo grande público e desentendeu a crítica por causa do jeito propositadamente artificial. Moulin Rouge é meticulosamente artificial na sua essência, mas não tem a artificialidade dos antigos musicais. Sua modernidade está na tragicomédia, no visual de carrossel, nas cenas aceleradas, mas sem os clichês dos clipes das bandas de rock. Qual diretor contemporâneo de videoclipe imaginaria uma alucinação de absinto misturando referências aos desenhos da Disney, incluindo uma fada verde e purpurinada, encarnada pela cantora Kylie Minogue? Uma heresia muito divertida com a mal-humorada fada Sininho da história de Peter Pan.

Luhrmann diz que quis colocar o público “num estado de sonho para que ele observasse a realidade”. Acertou em cheio numa fantasia pop que só tomou forma depois de o diretor e os profissionais de sua companhia, a Bazmark, terem se debruçado sobre um projeto que demorou quatro anos para ser concluído e depois filmado em Paris e no interior de cinco estúdios na Austrália. A reconstituição da capital francesa dos primórdios do século XX é magnífica. Em tomadas digitalizadas, a câmera voa, faz aproximações e recuos tão vertiginosos quanto a paixão de Christian por Satine. O produtor Martin Brown definiu o clima com precisão. “Você tem que entrar num acordo com o filme para acreditar naquela realidade.” E se entrar, com certeza, você embarcará numa das fitas mais fascinantes dos últimos tempos.