Mal pegou nos braços o rechonchudo Gabriel, de três meses, a pediatra e sanitarista Zilda Arns Neumann foi tirando a camisa e as meias do garoto. “Você é muito mais bonito do que essas roupas”, brincou a médica, numa casa da Vila Rigone, na periferia de Curitiba. Suave, mas decidida, Zilda não levou nem um minuto para executar a tarefa, sob o olhar complacente da mãe do bebê. Livre das roupas no dia de sol forte e muito calor, Gabriel pareceu ainda mais sorridente. Ele é uma das mais de 1,5 milhão de crianças atendidas pela Pastoral da Criança, organização não-governamental vinculada à Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) que atua em 3.277 dos 5.507 municípios brasileiros. Para chegar a 32 mil comunidades espalhadas por todos os Estados, Zilda conta com um exército de 145 mil voluntários. É gente dos mais remotos grotões que, junto com a médica, concorre ao prestigiado Prêmio Nobel da Paz.

Desde que foi criada, há 17 anos, a Pastoral da Criança só atua em bolsões de miséria. Todo mês, os voluntários acompanham o desenvolvimento de cada criança, orientam suas mães e coordenam a produção da multimistura, um complemento alimentar que muitos chamam de “farinha milagrosa”. Em geral preparada com trigo, arroz, milho, semente de abóbora, folha de mandioca e casca de ovos, a multimistura varia de acordo com a região. No Amapá, por exemplo, costuma ser enriquecida com açaí. Associada a outras ações, como campanhas de aleitamento materno, a fórmula vem alcançando resultados surpreendentes. Nas comunidades onde a pastoral atua, o índice de mortalidade infantil é 60% menor do que no resto do País. Entre os meninos atendidos, a taxa de desnutrição gira em torno de 7%, contra 16% da média nacional.

O mais surpreendente, porém, é o custo total do programa: R$ 0,86 mensais por criança. “Se esse trabalho fosse realizado pelo Ministério da Saúde, custaria 20 vezes mais caro”, estima o ministro José Serra, que é economista. “Só para começar, há 145 mil pessoas trabalhando de graça.” Entusiasta da ação da pastoral, no ano passado Serra dobrou a verba que o órgão repassa à organização. Foi também ele quem idealizou a indicação para o Nobel, encaminhada pela Presidência da República. Sinal dos tempos… Outros dois brasileiros indicados para o Nobel eram ferrenhos adversários do governo. Em 1970, concorreu dom Hélder Câmara, à época arcebispo de Olinda e Recife, que os militares alcunharam de “bispo vermelho”. Em 1989, foi a vez do então arcebispo de São Paulo, dom Paulo Evaristo Arns, um dos 12 irmãos de Zilda.

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Zilda em 1938, quando os Arns se reuniram e Paulo Evaristo ainda era seminarista. À dir., ela, pouco depois de ver a pobreza pela primeira vez

A mudança no relacionamento com o poder, aparentemente, não afeta Zilda. Questionada se a pastoral não poderia “virar governo” na esteira das articulações para o Nobel, ela não titubeia. “Deus que o livre”, reage. “Não somos nem queremos ser governo, mesmo porque fazemos trabalhos complementares.” A principal diferença, acredita a médica, é a capacidade que a sua turma tem de chegar às famílias através do afeto. Nascida há 66 anos em Forquilhinha, uma cidade fundada por seu pai em Santa Catarina, Zilda lembra que a comunidade de origem alemã era movida pela autogestão. “Só soube que existia governo aos 11 anos, quando vim estudar em Curitiba”, lembra. Na mesma época, teve seu primeiro contato com a pobreza. Ainda no trem que a levava para a capital paranaense, percebeu que as casas à beira da estrada não tinham hortas nem pomares. “Quando muito, havia uma cabra amarrada no madeirame”, diz.

Forquilhinha ficou para trás, mas a disposição de Zilda em ajudar no combate à pobreza parece interminável. A partir de treinamentos organizados pela Pastoral da Criança, trabalhos similares já estão sendo feitos em outros dez países: Angola, Guiné-Bissau, Moçambique, Argentina, Bolívia, Chile, Equador, Paraguai, Peru e Venezuela. O próximo da lista é o Timor Leste, país asiático recém-saído de uma guerra civil, que a médica acaba de visitar. “As marcas da destruição estão por todo lado, mas o que de fato me impressionou foi a esperança e o sorriso do povo de lá”, conta Zilda. Ainda este mês, o ministro da Saúde do Timor Leste, Jacob Filomeno, desembarca no Brasil para conhecer de perto a ação da pastoral.

Desafio – Hoje instalada em uma sede com mais de três mil metros quadrados de área construída, a pastoral começou em setembro de 1983, no consultório que Zilda mantinha nos fundos de sua casa, em Curitiba. Meses antes, dom Paulo recebera do então diretor executivo do Unicef, James Grant, a sugestão de combater a mortalidade infantil com trabalhos preventivos. O religioso repassou o desafio à irmã médica. À época, Zilda trabalhava de dia na rede de saúde pública e atendia pacientes particulares à noite. Com cinco filhos, ela ficara viúva pouco tempo antes, quando o marido sucumbira a um infarto ao salvar uma criança que se afogava.

No começo, a pediatra conseguiu conciliar todas as atividades. Depois, teve de parar de atender pacientes particulares. Aos poucos, como no conto A casa tomada, de Julio Cortázar, Zilda e seus filhos tiveram o espaço limitado no próprio lar. Primeiro, a construção dos fundos ficou pequena para a pastoral, que passou a usar um cômodo da casa da frente. “Com o tempo, fomos ocupando cada vez mais cômodos até a doutora ter de se mudar com a família para um apartamento”, conta a economista Rubia Pappini, 36 anos, os 12 últimos trabalhando na pastoral. A elegante Zilda, que tem cinco irmãos religiosos, possui também um acentuado lado missionário.