A influência do tráfico de drogas no Rio não se limita ao domínio das favelas nem às ousadas incursões em áreas das polícias e das Forças Armadas. O que deveria ser um simples flagrante de furto num hipermercado de Jacarepaguá (zona oeste), na tarde de sábado 27, expôs uma nova correlação de forças: o tráfico assumindo papéis do poder público. Duas mulheres que tentaram furtar nove frascos de protetor solar no Carrefour acusam o mercado de manter uma espécie de “convênio” com os traficantes Télo, Julinho e Lolonga da favela Cidade de Deus. Eles seriam responsáveis por “punir” (com tortura seguida de morte) moradores que furtam no estabelecimento.

Geni Ribeiro Barbosa, 30 anos, e Andréa Cristina dos Santos, 37, disseram à polícia que, depois de flagradas, foram levadas pelos fiscais José Luís de Alcântara Ferreira e Flávio Augusto Grachet a uma sala e mantidas em cárcere privado. Elas identificaram-se como moradoras da Cidade de Deus, para esconder o verdadeiro endereço na Pavuna. Eles avisaram que as entregariam para os traficantes da Cidade de Deus. Segundo o relato das vítimas, Quinho, representante de Julinho, chegou à sala dos fiscais e levou Geni até a favela, onde foi espancada, envolvida em pneus e ameaçada de ser queimada. Mas o terror foi interrompido porque a notícia da “punição” vazou para a polícia.

“Havia sinais de espancamento e lesões nas costas. Geni disse ainda ter tido os dedos apertados por alicate e as costas atingidas por pauladas”, revela o delegado Orlando Zaccone, da 41ª Delegacia de Polícia, responsável pelas investigações. Andréa afirmou que, ao sair do supermercado, foi abordada por Quinho que, armado, comunicara que também a levaria para a favela. Grávida de cinco meses, conseguiu fugir correndo e telefonou de uma loja nas proximidades para pedir socorro à polícia. O comerciante ouvido pelo delegado confirmou o relato da moça.

“A história delas faz sentido e a dos seguranças não”, diz Zaccone, que prendeu em flagrante o chefe da segurança, Tadeu Luís Mendonça Pinto, e os fiscais por formação de quadrilha e cárcere privado. O Carrefour se nega a dar declarações, mas publicou nota oficial, repudiando a atitude de seus funcionários. No entanto, o supermercado, segundo a polícia, é suspeito de ter editado a fita do sistema interno de vídeo que entregou para as investigações. A gravação mostra quando as duas mulheres são abordadas pelos fiscais, por volta das 16h40m, e levadas até a sala. Mas a saída delas, quando o traficante Quinho já estaria no local, não aparece. Há um corte. A cena seguinte é a partir das 20h30m. Os fiscais do Carrefour moram na Cidade de Deus há 30 anos e as ligações deles com o tráfico estão sendo investigadas.