Na mitologia grega, Nemesis é a deusa que personifica a desaprovação divina à arrogância, conhecida como Hybris. Assim, os homens soberbos e ambiciosos eram severamente punidos por Nemesis, que desse modo restabelecia o equilíbrio do mundo. Nos últimos tempos, parece que essa divindade grega pousou na Cordilheira dos Andes. Quase um ano depois de voltar triunfante ao Chile, saindo de uma prisão domiciliar de 503 dias em Londres, o ex-ditador Augusto Pinochet – que no poder se gabava que nem sequer uma folha se movia no Chile sem que ele tivesse conhecimento – foi finalmente detido em seu próprio país. Pouco antes das quatro horas da tarde da quarta-feira 31, duas oficiais de Justiça entregaram ao general em sua casa de veraneio de Los Boldos, em Bucalemu (a 130 quilômetros de Santiago), uma notificação assinada pelo juiz Juan Guzmán ordenando sua prisão domiciliar.

Pinochet é acusado de ser o autor intelectual do assassinato de 57 opositores políticos e do sequestro e desaparecimento de outras 18 pessoas, no episódio que ficaria conhecido como a caravana da morte, ocorrido entre setembro e outubro de 1973, no início de sua ditadura que durou 17 anos (1973-1990). Ao todo, o regime militar chileno assassinou ou fez “desaparecer” cerca de 3.200 pessoas. Com o que lhe restou da soberba dos velhos tempos, o general, 85 anos, se recusou a assinar a notificação – o que, de qualquer modo, não altera sua situação jurídica. “Com tanto stress, meu pai não viverá muito mais tempo. O juiz Guzmán e o governo chileno ficarão felizes então”, desabafou Marco Antonio Pinochet, filho mais novo do ex-presidente.

Fim da impunidade – Até ser preso em Londres em outubro de 1998, a pedido do juiz espanhol Baltasar Garzón, Pinochet era intocável no Chile. Mas o cativeiro britânico do general parece ter mexido com os brios da Justiça chilena. De fato, desde seu alegre regresso a Santiago, em março do ano passado, o ex-ditador vem vivendo um verdadeiro inferno astral. Em junho, a Corte de Apelações retirou-lhe a imunidade parlamentar – ele se tornara senador vitalício não-eleito depois que deixou o comando do Exército, em 1998 –, decisão que seria confirmada meses depois pela Suprema Corte. Em dezembro, o juiz Guzmán decretou sua prisão domiciliar, mas a medida foi suspensa pela Justiça, que determinou que Pinochet deveria ser submetido a exames médicos para se saber se ele poderia ser julgado. Os médicos lhe diagnosticaram uma “demência moderada”, o que, todavia, não impede a continuidade do processo.

No dia 23 de janeiro, o senador vitalício foi interrogado por Guzmán e negou qualquer participação nos assassinatos, atribuindo-os a subordinados. Essas declarações foram categoricamente desmentidas pelo ex-comandante da região militar de Antofagasta, general da reserva Joaquín Lagos, que em entrevista a uma tevê estatal disse que tinha recebido ordens diretas do próprio Pinochet sobre como agir na passagem da caravana da morte em sua jurisdição. Três dias depois do interrogatório, o ex-ditador foi internado no hospital militar por causa de uma pequena isquemia cerebral. Em seguida, veio a prisão domiciliar. O antigo condestável do Chile ainda vai passar pela extrema humilhação de ser fotografado de frente e de lado, além de tirar as impressões digitais para ser fichado, como um reles meliante.

Militares distantes – Mas o fato novo que emerge da detenção de Pinochet é a posição das Forças Armadas em relação ao indiciamento do general. Ao contrário do que aconteceu ao ex-ditador no seu retorno a Santiago, quando o Exército, capitaneado pelo seu comandante, general Ricardo Izurieta, lhe prestou ostensivas homenagens em desagravo, hoje os chefes militares parecem estar tomando uma relativa distância de seu antigo chefe. Tanto que, há duas semanas, o general Izurieta trocou os integrantes da guarda de Pinochet por oficiais e soldados menos comprometidos com o ex-comandante.

Sintoma do mal-estar que essa atitude de “lavar as mãos” dos militares provocou foi a reação de civis pinochetistas: no dia em que a prisão domiciliar de Pinochet foi notificada, centenas de manifestantes reuniram-se em frente ao edifício das Forças Armadas, no centro de Santiago, para protestar contra o que consideram uma “omissão” do Exército. “Izurieta traidor, entregaste o senador!” ou “Izurieta, Izurieta, que o Exército se meta!”, berravam as viúvas da ditadura. O único chefe militar a contestar publicamente a decisão da Justiça foi o comandante-em-chefe da Marinha, almirante Jorge Arancibia. “Quem semeia vento colhe tempestade”, ameaçou o chefe naval, certamente imbuído do espírito de Nemesis. O capitão-general Augusto Pinochet Ugarte que o diga.