Se o comunismo de Cuba tem um Deus (Fidel Castro), Ricardo Alarcón de Quesada, ex-chanceler e atual presidente da Assembléia Nacional do Poder Popular (Parlamento), é seu profeta. Alguns até o consideram um dos possíveis sucessores do comandante-em-chefe. Pelo menos até agora. Aos 63 anos, esse doutor em filosofia e letras de fala pausada defende o monopartidarismo do regime castrista como o estágio supremo da democracia, o que irrita liberais, mas continua tocando corações de muitos esquerdistas. Para Alarcón, um dos fundadores do Partido Comunista Cubano, o incremento das desigualdades sociais causadas pela virtual dolarização da economia cubana não está em contradição com o projeto socialista. De passagem pelo Fórum Social Mundial, onde defendeu o não-pagamento da dívida externa dos países do Terceiro Mundo, Alarcón deu a seguinte entrevista a ISTOÉ.

ISTOÉ – O que muda na relação Cuba-EUA com a ascensão de George W. Bush à Casa Branca? O embargo econômico contra Cuba vai ser mantido?
Ricardo Alarcón
– Não se pode fazer prognósticos, mas supõe-se que ele seguirá a mesma política de Bill Clinton. Acredito até que haverá um esforço para endurecê-la, já que a nova administração está ligada aos piores inimigos de Cuba, que são a ultradireita e a máfia dos cubanos de Miami. Mas também há um movimento crescente nos EUA que pede o fim do embargo contra Cuba ou, ao menos, uma modificação importante.

ISTOÉ – Mas por que haveria o interesse de alguns setores americanos em mudar a política em relação a Cuba?
Alarcón – Porque sabem que são eles mesmos, os americanos, que estão perdendo com o embargo. Cuba já começou a se recuperar e os EUA se dão conta de que estão se excluindo de um mercado importante. Temos dificuldades com o bloqueio, mas há empresários que investem em nosso país, mesmo com essas leis americanas que castigam os que ousam negociar com Cuba, na indústria de cítricos, no turismo, no petróleo. Os espanhóis, os franceses, os canadenses e os italianos são nossos atuais parceiros.

ISTOÉ – Muitos analistas dizem que o socialismo fracassou em Cuba, tanto que o regime teve que promover uma abertura capitalista. Como o sr. analista isso?
Alarcón – O que é fracassar ou ter êxito? Em Cuba, apesar do bloqueio, da crise econômica, temos acesso à saúde e formamos milhares de médicos. Segundo o BID, na década de 80 havia 90 milhões de pobres na América Latina. Na década de 90, esse número passou para 200 milhões de pobres.

ISTOÉ – Mas, se Cuba está tão bem, como o sr. explica a existência de uma economia informal?
Alarcón – Havia cubanos que recebiam dólares porque tinham parentes fora do país ou estavam associados à alguma atividade econômica estrangeira. Então, foi necessário haver um incremento econômico. E, com o fim do apoio do bloco socialista, foi inevitável que Cuba se voltasse para o capitalismo, o único mercado que existe. Por isso, houve um aumento do capital estrangeiro em Cuba e, em conseqüência, um desenvolvimento do turismo internacional. E turismo significa maior acesso de algumas pessoas aos dólares, acentuando as diferenças sociais. Mas, passados dez anos, a maioria dos assalariados cubanos hoje recebe os benefícios dessa economia dolarizada. Ao liberalizar o dólar, se oferece a possibilidade legal a qualquer um, mesmo aos que não trabalham com o turismo, de comprar a moeda americana. Fala-se muito sobre o dólar, mas quase nada sobre a moeda cubana, que é uma das pouquíssimas no mundo que foram valorizadas em meio à crise. O peso valorizou sete vezes nos últimos seis anos.

ISTOÉ – Que papel tem um Parlamento num regime de partido único como Cuba? Pode haver democracia?
Alarcón – No mundo neoliberal, os Parlamentos não são respeitados. As políticas econômicas e sociais desses países são decididas no Exterior, pelos burocratas do Fundo Monetário Internacional (FMI) em Washington. Então, todos os dias são tomadas medidas que afetam as populações e os eleitores: quando se acabam com os subsídios, os serviços sociais, quando se reduzem os gastos públicos. Uma diferença singular e privilégio de Cuba é que somos o único país do planeta que não recorre ao FMI. Temos um Parlamento que decide soberanamente onde investir; se em saúde, educação, levando em conta apenas a opinião da população. Nos países em que se consulta e se leva em consideração a política do FMI, não existe democracia na prática de seu poder. Que importa que haja vários pontos de vista se ninguém os escuta? Em Cuba, discutimos até o preço da garrafa de rum.

ISTOÉ – Como o sr. define a democracia?
Alarcón – A democracia se define pela própria etimologia: autoridade do povo. Em sociedades nas quais os governos não podem interferir nas empresas capitalistas, que fazem somente o que querem, não há o exercício da autoridade popular. A questão da democracia nunca foi ter vários partidos. Isso é uma invenção ianque que termina agora com essa vergonha que foi a eleição do Bush. A democracia também não se limita à formalidade do exercício eleitoral. E eu respeito tudo isso, mas não acredito que esse método seja o mais democrático.

ISTOÉ – No Fórum Social Mundial, o sr. fez a defesa do não-pagamento da dívida externa pelos países do Terceiro Mundo. Como justifica essa posição?
Alarcón – Simplesmente porque a dívida desses países já foi paga várias vezes. Em 1980, o montante dela era de US$ 500 bilhões; de lá para cá, subiu para US$ 2,5 trilhões. O que se conclui disso? Que a dívida quintuplicou e o Terceiro Mundo continua pagando. Ou seja, ela nunca terminará. Essa dívida é uma forma de colonização, de escravização das sociedades e das economias do Terceiro Mundo que acaba prejudicando o próprio funcionamento do capitalismo global. Chegará a um ponto que será mais lógico para os capitalistas aboli-la do que continuar a cobrança de uma dívida sem fim. Por que a escravidão acabou? Não foi por justiça, mas porque o sistema se tornou economicamente inviável. Era mais negócio para o senhor de engenho ter trabalhadores livres, contratados, do que continuar mantendo escravos. O mesmo acabará ocorrendo com a dívida externa. Os países do Terceiro Mundo estão perdendo toda a sua capacidade de desenvolvimento, situação que está se tornando negativa para os próprios centros capitalistas.