Até hoje o ex-detetive americano Samuel Dashiell Hammett (1894-1961) é considerado um dos grandes da literatura do século XX, apesar da parca produção de quatro ou cinco romances, número variável de acordo com cada biógrafo do mestre do policial. Se comparado a seu colega de gênero, o também especial Raymond Chandler – que por sinal era um de seus maiores admiradores –, a distância aumenta um pouco, mas não muito. Chandler escreveu oito romances e sete livros de contos. Os dois, no entanto, renderam adaptações de suas obras para o cinema. Na verdade, a maior parte da lavra de Hammett concentra-se nas historietas curtas para as antigas pulp magazines, nome derivado de polpa, papel barato empregado na impressão das revistas. São exatamente esses contos, publicados na Black Mask, que entusiasmaram Chandler. Eles agora estão sendo lançados pela primeira vez em livro sob o título Tiros na noite (Record, 544 págs., R$ 49) – coletânea de 20 contos pouquíssimo conhecidos ou nunca publicados –, em homenagem aos 40 anos da morte do autor.

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Robards e Jane em Julia personificando o casal Hammett e Lilian (à dir.): companheiros

Sociedade corrupta – Nascido no Estado de Maryland, na costa leste dos Estados Unidos, logo na adolescência Dashiell Hammett percebeu que tinha problemas com autoridade. Não se adaptou nem ao colégio, nem aos bicos de ferroviário, balconista e outros mais. Em 1915, com 21 anos, ao responder a um anúncio pedindo pessoas “com disponibilidade para viajar” acabou ingressando na filial de Baltimore da Agência de Detetives Pinkerton, onde, entre idas e vindas, permaneceu sete anos. Funcionou como pós-graduação na escola da vida. Viajando em seguida pelos Estados Unidos, aprendeu o palavreado seco e duro dos marginais, a discutível noção de lealdade entre parceiros, o lado sórdido do relacionamento homem e mulher e, principalmente, o significado da palavra sistema. Num episódio controvertido, Hammett atuou como fura-greve em Butte, Montana, quando lhe ofereceram US$ 5 mil para assassinar um líder sindical. Indignado, recusou e o tal homem acabou sendo linchado. A partir daí o futuro escritor convenceu-se de que vivia numa sociedade corrupta.

Na primeira vez que se desligou da Pinkerton, em 1918, para se alistar no Exército, contraiu uma tuberculose que o perseguiria pelo resto da vida. Numa das passagens pelo hospital, conheceu sua primeira mulher, Josephine Dolan. Ela lhe daria duas filhas, Mary Jane e Josephine Rebecca. Depois de sua saúde tornar-se mais precária, saiu definitivamente da agência de detetives e matriculou-se numa escola de secretariado com a intenção de aprimorar sua escrita. Logo estava vendendo contos para revistas policiais. Dez das 20 histórias de Tiros na noite foram publicadas em Black Mask, entre 1923 e 1926. Cidade pesadelo, de 1924, lançada na revista Algosy All-story Weekly, traz o embrião de Poisonville – a cidade onde se passa a história do romance Safra vermelha (1927).

O falcão maltês (1929) – os outros romances foram Maldição em família (1928) e Chave de vidro (1930) – abriu a porta para Hollywood. Mais tarde transformou-se no cultuado filme que no Brasil ganhou o nome de Relíquia macabra (leia quadro à pág. 96). O herói Sam Spade era modelado nele mesmo. A começar pelo nome, derivado de Samuel. Aos 36 anos, separado, bonitão, com ar de intelectual e ganhando US$ 100 mil anuais, Hammett chamou a atenção da escritora e colaboradora de roteiros Lilian Hellman, então uma garota de 24 anos, casada, de quem mais tarde se tornaria companheiro. Hammett era um verdadeiro Príncipe Encantado, apelido dado por uma colunista social. Torrava dinheiro, envolvia-se com álcool e mulheres. Foi um dos primeiros homens a ser processado por assédio sexual. Não perdeu a causa. Mas a chorosa starlet Elise de Vianne pediu indenização de US$ 35 mil. As continuações das aventuras do detetive Sam Spade, contidas em Tiros na noite, não passaram de obrigação profissional. O mesmo poderia ser dito de A ceia dos acusados, de 1933, seu réquiem como escritor de histórias policiais. Em 1934 fez uma colaboração com o desenhista Alex Raymond, de Flash Gordon, que resultou na história em quadrinhos Agente secreto X-9, levada às telas sem o sucesso esperado.