De tempos em tempos parece que o nível de narcisismo de Woody Allen cai a zero. Então, um verdadeiro milagre acontece. Ele desvia o olhar das suas conhecidas neuroses e se entrega a ótimas histórias sobre personagens que não costumam ficar choramingando em frente ao Central Park de Nova York. É o caso de Poucas e boas (Sweet and lowdown, Estados Unidos, 1999) – em cartaz no Rio de Janeiro e São Paulo –, divertida comédia dramática passada nos anos 30, que reconstrói o ambiente jazzístico da Depressão americana. No centro do palco está o músico Emmet Ray (Sean Penn), autêntico “bagunceiro arrumadinho”, que se julga o segundo maior guitarrista do mundo depois do belga Django Reinhardt (1910-1953). Mulherengo e infantil, Ray reúne as manias típicas do artista aventureiro da época. Só entra no palco bêbado e atrasado, depois de horas de jogatina. Além de dar uma de cafetão, cultiva hábitos esquisitos como praticar tiro ao alvo em ratazanas ou levar suas conquistas para ver locomotivas em estações desertas.

Numa viagem a Atlantic City, conhece aquela que seria o grande amor de sua vida, Hattie (Samantha Morton), uma ingênua funcionária de lavanderia com ares de Lilian Gish, a heroína dos filmes de D. W. Griffith. Ao cortejá-la, Ray fala tanto que demorou a perceber que ela é muda. Outra de suas conquistas é Blanche (Uma Thurman), femme fatale aspirante a escritora que se apaixona por ele ao flagrá-lo num de seus instantes de cleptomania. Embalado por uma belíssima trilha de jazz, a história de Ray é narrada com um pé nas trapalhadas das comédias do cinema mudo e outro no estilo documentário, já que conhecidos críticos de jazz e o próprio Allen comentam passagens da vida do biografado. Emmet Ray, obviamente é fictício. Mas graças à mágica de Woody Allen é como se realmente tivesse existido.