abre.jpg
INSTÁVEL
Domingos Salvador, personagem de
Paulo Vilhena da novela da Rede Globo

Domingos Salvador é um esquizofrênico que em surto produz pinturas inacreditavelmente expressivas, que em muito lembram a força das telas de Vincent van Gogh. Fugitivo de uma instituição psiquiátrica, o personagem da novela das 21 horas da Rede Globo vivido por Paulo Vilhena tem sua pintura vendida por cifras altas em leilões, mas, como o pintor holandês, que morreu sem ser reconhecido, não tem a menor ideia do valor do seu talento. Domingos Salvador, o transtornado de “Império”, na verdade, está longe de ser um dos personagens que só existem na televisão. No mundo real, o casamento entre a expressão artística e os transtornos mentais não é algo tão excêntrico e raro como a ficção e os mitos da arte nos contam. Pintores com esquizofrenia e outros distúrbios mentais expõem e muitas vezes acabam vivendo de seus trabalhos, atividade que quase sempre entra em suas vidas como forma de tratamento de sintomas como surtos psicóticos, depressão e compulsões de toda natureza.

CULTURA-04-IE-2357.jpg
ENTRE SURTOS
Badia de Araujo Mils (acima) que pinta quadros no estilo naif,
e Ana Rute Gironda (abaixo) que cria abstrações quando não está em crise

 CULTURA-05-IE-2357.jpg

A aposentada Badia de Araujo Mils, 89 anos, sofre de depressão, ansiedade e compulsão e há 15 anos teve seu quadro agravado depois
de uma queda que a deixou numa escuridão da qual só emergiu com a ajuda da pintura. “Pintar me ajuda muito, pois percebo que estou criando. Saio do mundo real, fica mais fácil aguentar o baque da vida. Ignoro a realidade e entro em uma fantasia que traz algo para o mundo”, diz ela, que adora Vincent van Gogh. “É o meu favorito.” Ana Rute Gironda, 66 anos, é outra paciente psiquiátrica que se apoia na pintura e usa suas telas como termômetros de seu estado mental. “Me preocupo muito com as escolhas das cores. Às vezes estou mal e pinto telas pretas. Preto e vermelho são sinais de que você não está com o espírito muito bom. Para mim cores pastel representam mais equilíbrio interior.” Ambas frequentam um grupo de apoio com orientação de médicos psiquiatras que acompanham o uso da pintura como tratamento.

Em entrevista publicada no site de Aguinaldo Silva, autor da novela “O Império”, Vilhena conta ter se inspirado em figuras de destaque na cultura brasileira, como o artista Arthur Bispo do Rosário, que criou a maior parte de seu reconhecido trabalho entre muros de uma instituição manicomial. Para construir seu personagem, o ator visitou o Instituto Municipal Nise da Silveira, um dos mais antigos hospitais psiquiátricos do País, e lá conviveu com pacientes que o ajudaram a criar Domingos Salvador. Os quadros exibidos na novela foram pintados pela artista plástica Ana Durães. Ana emprestou as pinceladas de Van Gogh, o mais famoso dos transtornados da pintura, mas não só.“Me inspirei muito na arte bruta e no expressionismo, que têm carga material, velocidade e um peso na impressão que passa a tensão interna”, disse a pintora à Istoé.

O ator estudou o gestual dos pacientes esquizofrênicos in loco, mas, de acordo com especialistas, está bem distante da realidade. “Como personagem de ficção funciona, mas o esquizofrênico na vida real não tem essa quantidade de tiques. Ao contrário, é mais comum que ele não tenha nenhuma expressão”, diz a psiquiatra Rita Cecília Reis Ferreira, do Hospital das Clínicas da Universidade de São Paulo. “As pessoas tendem a achar que loucura produz arte, mas é a parte saudável da mente que cria. Ninguém consegue produzir durante um surto psicótico”, diz a especialista. A finalidade da arteterapia, segundo ela, não é a formação de artistas, mas às vezes isso acontece, o que ela só festeja. Para a médica, a pintura é mais eficiente que outras formas de expressão como ferramenta terapêutica. “A palavra passa pelo controle do pensamento, a imagem não. Isso favorece um acesso mais profundo dos seus conflitos interiores”, diz. Para a psiquiatra, a arte é uma forma de catarse, algo que proporciona a compreensão daquilo que o paciente sente. “Você possibilita que as pessoas tenham outra identidade além delas mesmas, uma identidade artística, além da pessoal”, diz. Esse sentido de algo exterior a si mesmo é o que permite uma ponte entre o esquizofrênico e o mundo externo e, portanto, uma possibilidade, ainda que remota, de recuperação.

arte.jpg

Pioneira
Nascida em Maceió em 1905, a renomada psiquiatra Nise da Silveira foi discípula e amiga do psicanalista suíço Carl Jung, que chegou a visitar o Brasil para conhecer o trabalho de arteterapia pelo qual a colega trocou os choques elétricos e injeções de insulina, tratamentos correntes para transtornos mentais . Após passar um período na semiclandestinidade por sua afiliação ao comunismo, começou a trabalhar no Centro Psiquiátrico Nacional Pedro II em 1944, onde estabeleceu ateliês de pintura e modelagem para os pacientes.

CULTURA-06-IE-2357.jpg

O Museu de Imagens do Inconsciente, um centro de estudo e pesquisa dedicado à preservação desses trabalhos, foi fundado por ela em 1952, e se tornou a primeira iniciativa desse tipo no País. Reconhecida internacionalmente por seu trabalho, Nise morreu em 1999, aos 94 anos.

Fotos: Rafael Hupsel/ag. istoé; Alexandre Campbell/Folha Imagem