O manto de silêncio e segredo sobre a Guerrilha do Araguaia (1972 a 1974), um dos dramas da história recente do Brasil, começa a ser levantado. Não é pela abertura dos arquivos do Exército sobre a guerrilha do PCdoB, dizimada pelas tropas na maior operação militar já realizada em território brasileiro. Tampouco por descoberta de pesquisadores e estudiosos. Quem começa a contar tudo o que viu e sofreu é o povo da região. Gente humilde que, às centenas, foi torturada pelas tropas durante a campanha militar. A maioria hoje tem idade avançada. São homens e mulheres, vivendo em condições piores do que há 30 anos, que resolveram falar a verdade para quatro procuradores da República – Marlon Weichert, de São Paulo, Felício Pontes e Ubiratan Cazetta, do Pará, e Guilherme Schelb, de Brasília. Eles entraram no caso por causa de um pedido de informações feitos pela Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos ao procurador Marlon, que havia conduzido as investigações sobre as ossadas encontradas no Cemitério de Perus, em São Paulo. Os quatro decidiram que deveria ser um trabalho conjunto das três Procuradorias e abriram um inquérito civil público. Acompanhados da ex-guerrilheira Criméia Alice Schmidt, de Laura Petit e Janaína Teles – que tiveram parentes mortos na guerrilha –, os procuradores saíram a campo pelo interior do Pará.

Os depoimentos de mais de 40 moradores da região a que ISTOÉ teve acesso são chocantes. Em linguagem simples e direta, contam que praticamente todos os homens do local foram presos pelo Exército e levados para as bases em Bacaba, Marabá e Araguaína. Depois de viajarem amontoados como gado em caminhões, cerca de mil pessoas passaram por longas sessões de interrogatórios, que incluíam espancamentos, choques elétricos e selvagerias como ser pendurado pelos testículos ou pelos pés dentro de buracos cavados na terra. O objetivo de tamanha barbárie era conseguir informações sobre os guerrilheiros. A população local não foi somente fonte de informação para o Exército. Os militares determinaram que os camponeses conhecedores da selva teriam de servir de guias para as tropas. Sob tortura, mais de 100 homens foram transformados em colaboradores. Entre eles, Raimundo Nonato, o Peixinho, que testemunhou muitas mortes e também reconheceu vários guerrilheiros nos cartazes da Comissão dos Desaparecidos. “Eles bateram muito na gente. Depois eu virei guia, mas não matei ninguém. Eu vi Cristina (codinome de Jana Morani Barroso) morrer”, disse Peixinho.
 

Pedro Moraes da Silva tinha 11 anos quando a guerrilha se instalou no Araguaia. Uma das lembranças mais vivas foi a prisão de seu pai, o lavrador Frederico Barros da Silva. Ele foi tirado de casa e levado por soldados fortemente armados. Pedro morava junto ao igarapé Fortaleza quando assistiu a seu pai ser tachado de terrorista e espancado. Quatro dias depois, Pedro e sua família receberam a visita do major Sebastião Curió. Ele ordenou a todos que se mudassem para a casa de Vanu (Manoel Leal Lima), um dos mais conhecidos guias do Exército. “No dia seguinte, eu, minha mãe (Adalgisa) e meus irmãos voltamos para pegar mantimentos e nossos animais de criação (galinhas e porcos). Encontramos tudo queimado”, relata Pedro. O pai só foi encontrado seis meses depois, em São Domingos do Araguaia. “Estava louco, por causa das torturas”, lembra, resignado. O guia Vanu contou para a família que Frederico, além de ser espancado e ter levado choques, tinha sido pendurado pelos testículos. Seu crime: ter sido amigo dos guerrilheiros. Sônia (codinome da militante Lúcia Maria de Souza), por exemplo, foi quem fez o parto de uma das irmãs de Pedro. Hoje, com 40 anos, ele ainda se emociona quando lembra da bela guerrilheira, uma paixão da infância. “Eles eram pessoas boas”, afirma. O procurador Felício Pontes considerou o relato de Pedro muito importante: “Ele reconheceu, no cartaz dos desaparecidos, nada menos que 14 guerrilheiros com quem teve estreito convívio na infância.”

Sessão tortura – A rotina dos interrogatórios, que envolvia dezenas de homens por vez, foi descrita por muitas testemunhas. Eles eram feitos em três etapas. Primeiro, os camponeses tinham de ficar em pé, descalços, sobre duas latinhas abertas, podendo apoiar apenas um dedo de cada mão na parede. As perguntas sobre os guerrilheiros eram alternadas com pancadas. A segunda sessão de coação, que ocorria em outra sala, mantinha os mesmos ritos violentos. Os camponeses, então, seguiam para a terceira e última etapa de torturas. Qualquer divergência no depoimento causava a volta à sala inicial. Os considerados mais resistentes ou envolvidos com a guerrilha seguiam direto para os choques elétricos e, finalmente, para os temidos buracos na terra. Uns não resistiram e morreram. As famílias, como a de Pedro, eram expulsas da área de conflito, sem estrutura para recomeçar suas vidas. Os guias do Exército foram mais bem tratados. Exterminada a guerrilha, ganharam lotes ao longo de uma das estradas abertas pelos militares. Desde então, são mantidos sob vigilância do Exército, que chega ao ponto de dar aos antigos colaboradores armamento e até porte de arma. Eles também recebem cestas básicas. “Flagramos três militares à paisana entregando agrados a um guia. Tentaram dizer que eram jornalistas. Descobrimos que eram agentes do Serviço de Inteligência do Exército”, afirma o procurador Marlon Weichert.

José Rufino Pinheiro, 82 anos, foi um dos que, depois de muita pancada, virou guia. Ele é testemunha das mortes dos guerrilheiros Osvaldão (Osvaldo Orlando da Costa) e Sônia. O mitológico Osvaldão, ex-atleta do Botafogo do Rio e o mais odiado pelo Exército por ter sido tenente da reserva, foi morto pelas costas com um tiro. Sônia caiu numa emboscada e foi metralhada nas pernas. Rufino conta que os militares ainda tentaram interrogá-la, mas ela não respondeu a nenhuma pergunta, sendo depois executada. Luiz Martins, camponês que lutou ao lado dos guerrilheiros, foi preso, torturado e virou guia. Martins, um dos primeiros moradores da região a entrar na luta armada, passou 22 dias na selva com uma patrulha da guerrilha, sob comando de Nelito (Nelson Dourado, marido de Cristina). Ele disse que a partir de certo momento o Exército ordenou que os guerrilheiros tivessem as cabeças cortadas. O relato foi confirmado por Criméia. Segundo ela, os guias contaram aos procuradores, “de forma impressionante, as atrocidades cometidas pelos militares. Eram cabeças carregadas em mochilas como troféu e execuções atrás de árvores”. Martins não recebeu uma pistola dos militares: “Eles diziam que eu tinha ficado muito tempo com os terroristas e não era digno de confiança.” Raimundo Alves de Oliveira, um dos poucos ex-militares a permanecer na área, foi soldado na época do combate, colaborou com as investigações dos procuradores, revelando o destino de alguns guerrilheiros.

Uma redação armada até os dentes

Somos jornalistas”, afirmaram os três homens quando saíam da casa modesta de José Veloso de Andrade, ex-guia do Exército na Guerrilha do Araguaia. A explicação deixou os procuradores Ubiratan Cazetta e Marlon Weichert espantados. Na véspera, quando tentaram convencer Veloso a depor sobre a guerrilha, ele informou que estava proibido pelo “pessoal do Exército” de falar sobre o assunto. Mais ainda: avisou que eles estariam em sua casa no dia 13 de julho, usando uma picape do modelo utilizado pelos “jornalistas”. Os procuradores decidiram investigar. Ubiratan, Marlon, Guilherme Schelb e a subprocuradora Maria Eliane denunciaram a pressão do Exército sobre as testemunhas da guerrilha ao general Alberto Cardoso, ministro-chefe do Gabinete de Segurança Institucional. Ele prometeu apurar o assunto. Uma semana depois, sem receber informações, os procuradores conseguiram um mandado de busca e apreensão na sede da “agência de notícias” dos militares em Marabá.

As duas casas, cercadas por um muro alto em uma rua sem saída, não sediavam órgão de imprensa algum. Ali funcionava a sede da agência local do Centro de Inteligência do Exército. Em vez de computadores ou outros equipamentos usados por jornalistas, os procuradores encontraram um arsenal de cinco metralhadoras, seis fuzis, 12 pistolas privativas das Forças Armadas e 12 revólveres. Foram apreendidos “manuais de inteligência” do Exército e um livro diário das atividades dos “repórteres”, onde estão relacionadas as “pautas”. Curiosamente, os “jornalistas” saem sempre armados para as matérias. Para não dizer que não havia equipamento jornalístico no bunker dos arapongas, foram encontradas 12 máquinas fotográficas e dez coletes do tipo usado por fotógrafos. O Exército protestou contra a ação dos procuradores, dizendo que se tratava de uma instalação militar. Na casa, não há nenhuma identificação que a caracterize como um quartel.

 

Reparações – A consequência da violência sofrida pelos camponeses não pode cair no esquecimento e ficar impune, defendem os procuradores. “Trata-se de reparar graves violações dos direitos humanos e patrimoniais de gente humilde, que hoje vive em estado de miséria. Eles precisam ter seus prejuízos ressarcidos rapidamente ainda em vida”, afirma Schelb. Ele destaca que já existe legislação beneficiando a família de mortos e de desaparecidos políticos, mas o povo, que teve seus direitos violados apenas porque vivia na região, ainda não teve isso reconhecido. “É gente sofrida, pobre. Seus depoimentos vão esclarecer muita coisa, pois, por exemplo, viram muitos guerrilheiros serem presos vivos, sem ferimentos, e depois sumirem.

Eles também são um arquivo vivo das violências, inclusive as que sofreram na própria pele”, conta o procurador Ubiratan Cazetta. Janaína Telles, sobrinha de Criméia e André Grabois, morto no Araguaia, acompanhou os procuradores. Janaína, que tinha cinco anos em 1972, quando ficou presa com a família no DOI-Codi, em São Paulo, também esteve na região em 1996, junto com o MP e a Polícia Federal, mas considera as investigações de hoje mais importantes. “Estes depoimentos talvez tenham mais valor que se a gente tivesse encontrado alguma ossada. Apurar verdades e respostas não é revanchismo. Aquilo foi um crime contra a humanidade”, acusou.

Para os quatro procuradores, chegou a hora de contar a verdadeira história do Araguaia. “Abrir os arquivos só engrandece o Exército e as Forças Armadas e ajudará a virar uma página obscura de nossa história”, afirma Schelb.

A guerra do fim do mundo

Ines Garçoni

A convivência entre camponeses e guerrilheiros alimentou uma série de histórias. Um dos personagens mais famosos foi Osvaldo Orlando da Costa, o Osvaldão, muito popular na região. Conta a lenda que, quando uma camponesa reclamou da dificuldade que tinha para alimentar os filhos, Osvaldão comprou o cachorro da família por uma boa quantia. “Eu pago, mas, por favor, a senhora cuida dele para mim porque não posso levá-lo para casa agora”, teria dito o militante do PCdoB. Tenente da reserva do Exército, ele foi, em 1967, um dos primeiros a chegar à região do rio Araguaia, palco de um dos episódios mais importantes da luta armada durante a ditadura militar. Morto em 1974, o corpo de Osvaldão ainda está desaparecido.

Até hoje, o embate entre o Exército e os 69 guerrilheiros é o segredo mais bem guardado pelas Forças Armadas sobre suas atividades durante o regime. Para sufocar a guerrilha, mais de cinco mil homens foram mobilizados na maior ofensiva militar brasileira desde a Segunda Guerra. Os militantes do PCdoB, muitos deles com treinamento na China, atuaram em uma área de 7 mil quilômetros quadrados de floresta tropical. Entre eles estava o hoje deputado federal José Genoíno (PT-SP), que sobreviveu às torturas na prisão. Divididos em quatro grupos de combate, misturaram-se aos moradores, disfarçados de camponeses e pequenos comerciantes. A tarefa era convencer a população local da necessidade de uma revolução e incorporá-la à guerrilha rural.

Mesmo com a tentativa de conscientização política, o intento malogrou. O número de combatentes não cresceu significativamente. Ao contrário, diminuiu. O Exército fez três investidas contra a guerrilha. A primeira, em abril de 1972, foi facilmente rebatida pelos militantes. O comando revolucionário estava pronto para a luta, liderado pela Comissão Militar, formada por Maurício Grabois, Ângelo Arroyo e João Carlos Haas Sobrinho. Já o Exército não estava preparado para combater na floresta. Em setembro do mesmo ano, os militares voltaram ao Araguaia e tiveram mais uma derrota.

A ditadura aprendeu a lição: passou a infiltrar homens na região, preparou soldados para a batalha na selva, além de convocar os batalhões de elite, principalmente os pára-quedistas. Ao final da terceira e última campanha, em 1974, entre mortos e desaparecidos, tombaram 59 guerrilheiros. A censura impediu a divulgação do massacre até o final dos anos 70. “As Forças Armadas jamais divulgaram dados sobre o episódio. Em conseqüência, foi como se a guerrilha não existisse para o povo brasileiro”, escreveu o historiador Jacob Gorender, no livro Combate nas Trevas.