Carlos Magno
Negros deveriam fazer filme sobre brancos e camponeses sobre intelectuais

Depois de ter pensado em abandonar o cinema, o diretor Eduardo Coutinho ressurgiu com dois trabalhos contundentes: Santo forte, de 1999, e o recente Babilônia 2000, no qual acompanha a preparação para o réveillon entre os moradores das favelas cariocas Babilônia e Chapéu Mangueira, únicas localizadas na orla de Copacabana e com vista privilegiada para a famosa queima de fogos. Em sua garimpagem documental, o cineasta extraiu depoimentos singulares. Ele não entende, porém, como consegue arrancar tantas confissões. Coutinho se descreve como um tímido, diz conhecer pouca gente e julga-se pouco simpático. “Talvez seja porque eu não quero nada das pessoas, não quero transformá-las, não quero ganhar dinheiro delas, quero apenas ouvi-las”, justifica. Histórias singulares são a essência de seus trabalhos de orçamento curto. Babilônia 2000, por exemplo, saiu por R$ 370 mil. Outro fator essencial do baixo custo é que o cineasta precisa apenas de uma câmera e um entrevistado disposto a falar. Foi assim com o premiado Cabra marcado para morrer, de 1984, até hoje considerado o melhor documentário produzido no País. “Mesmo que Cabra não ganhasse prêmio nenhum, continuaria achando um filme genial, porque é uma obra-prima”, garante. Paulistano da Bela Vista, 67 anos, há 40 radicado no Rio de Janeiro, casado e pai de dois filhos, Eduardo Coutinho falou a ISTOÉ sobre a profissão de documentarista – “marginal em qualquer lugar do mundo” – e o fascínio que sente pela trajetória dos excluídos.

ISTOÉ – Os temas burgueses não lhe atraem?
Eduardo Coutinho – O que me interessa é o outro, o outro radical, o outro que não se parece comigo. Acho que seria interessante fazer documentário sobre a classe média, os intelectuais. Mais bacana ainda se fossem feitos por um camponês. Também um negro fazendo documentários sobre os brancos. Esse tipo de povo que aparece nos meus filmes não aparece na televisão. E quando aparece é como uma flor exótica.

ISTOÉ – Por que o fascínio pelo mundo da favela?
Coutinho – A favela tem unidade e ao mesmo tempo diversidade. A Chapéu Mangueira é uma excelente favela. O morador vive bem em relação à massa de brasileiros. É uma realidade diversa. Há pessoas que têm mais, outras menos. O que há em comum é o estigma de morar em favela. No Rio de Janeiro, ela está ao lado de gente rica. Traz uma formação cultural, uma tradição de 100 anos. Quero ter dinheiro para fazer um filme que responda a uma pergunta: como sobrevivem e têm esperança pessoas que moram em favelas e na periferia de São Paulo? Elas certamente têm um mistério a esconder.

ISTOÉ – Como você selecionou os depoimentos?
Coutinho – Filmei 27 horas e reduzi para 1h20. Começo com o copião. Dou uma chance para todos e aí vou vendo quem aguenta. Meus documentários não têm refresco visual. Não há gente se arrumando para festa, garotos soltando pipa ou jogando futebol.

ISTOÉ – O fotógrafo Sebastião Salgado costuma dizer que não fotografa pessoas quando elas estão numa cena abaixo da própria dignidade. Você também age assim?
Coutinho – Certamente. Meu momento mais difícil foi durante o documentário Boca de lixo. Os catadores de lixo detestam ser filmados. Fui ganhando a confiança deles aos poucos, mas foi muito difícil porque eu sabia que eles comiam daquele lixo. Queria esta verdade, mas mantendo a dignidade deles, mostrando que no meio do lixo existe uma comunidade como outra qualquer.

ISTOÉ – Você paga para os entrevistados?
Coutinho – Pago e não pago. No lixo, não paguei ninguém. Uma catadora não quis receber, se sentiu ofendida. Em Santo forte paguei por uma razão muito simples. Ia ocupar o tempo deles. Precisava garantir que no dia da filmagem algumas pessoas estivessem em casa. Na Chapéu Mangueira teve cachê só para duas pessoas que iam viajar e eu pedi para ficarem em casa. Elas ganharam R$ 40. Ou as pessoas têm prazer em conversar comigo e eu com elas ou então não tem filme.

ISTOÉ – Durante as filmagens em favelas você teve algum problema com o tráfico?
Coutinho – No Rio acontece um fenômeno curioso. Há uma grande festa do turismo no réveillon. Então se anuncia que a PM vai ocupar a favela. Na minha opinião, os traficantes tiram férias de 24 de dezembro a 4 de janeiro. Ninguém está a fim de afrontar a polícia.