O andar é firme, o olhar altivo. Nas ruas de Rio Claro, interior de São Paulo, Ilda Ribeiro de Souza é apenas uma senhora de 76 anos que nutre vaidade e esbanja determinação. Cabelos pintados de acaju, óculos de sol e sandálias de salto alto são os sinais do tempo distante do chapéu de couro, da fome e da vida amarga ao lado do marido Zé Sereno, um “soldado” do rei do cangaço, Virgolino Ferreira da Silva, o Lampião. Sila, como Ilda era conhecida, sobreviveu ao massacre de Angicos. “Para não morrer, corri entre os xiquexiques, as catingueiras e fiquei com as pernas em carne viva”, lembra ela sobre o tormento daquela manhã de 28 de julho de 1938, em Sergipe, quando os homens do capitão João Bezerra mataram Lampião, Maria Bonita e mais nove do bando. Sila, todas as noites, conta no Centro Cultural de Rio Claro as histórias do cangaço, ao lado de Lampião, Maria Bonita, Corisco e Dadá. O relato tem reunido gente de todas as idades. É um pouco do Brasil ao vivo e em cores.

O diretor do centro cultural, Rocco Caputto, a descobriu na cidade cuidando de um filho doente e sugeriu a palestra diária. Em uma sala, ela reuniu fotos, livros que escreveu e fitas de vídeo para chamar a atenção do público. Porém, a atração maior tem sido a sua presença entre os estudantes. Ela assegura que relembrar um passado recheado de perseguições e mortes em plena caatinga não a incomoda. “As lembranças estão vivas na memória como um filme que não pára de rodar. Revejo as cenas todos os dias. É impossível esquecer.” Com 13 anos, órfã de pai e mãe, Sila foi raptada em Poço Redondo, Sergipe, pelo cangaceiro Zé Sereno para viver com ele e fazer parte do bando de Lampião. O ano era 1936 e ela ainda brincava de boneca. “A vida na caatinga correndo da polícia era vida de cão, mas os companheiros deixaram saudade.”

Daquele tempo, sobram pesadelos. “É como cair da cama todas as noites. Sempre sonho que estou fugindo dos tiros dos soldados.” Ao mesmo tempo, as lembranças de Lampião e Maria Bonita são as melhores possíveis. “O Lampião que a história oficial apresenta não é o mesmo que eu conheci”, revelou. “Nunca o vi praticar nenhuma selvageria. Ele era o Robin Hood do Nordeste. Um homem bom, que ajudava os mais necessitados e honrava a palavra.” Sobre a amiga Maria Bonita, uma certeza: “Foi uma covardia, cortaram-lhe a cabeça, quando ela implorava para que não a matassem.”

Para a sobrevivente de Angicos, a força policial sempre foi arbitrária. “Antes, a polícia vivia no mato atrás de Lampião. Hoje, em vez de proteger o cidadão pratica barbaridades. Pelo que vejo, mudou apenas o cenário.” Sila, que viveu sob a lei do cangaço, atesta: “A violência agora é maior do que naquele tempo. Já fui assaltada várias vezes e tenho medo de sair de casa. Tudo isso por causa da pobreza e da corrupção.” Com a morte de Lampião, Sila e Zé Sereno chegaram a São Paulo em 1947 à procura de uma vida melhor. Ele morreu funcionário público, em 1982, e ela aposentou-se como costureira. Mas volta à ativa como contadora da história.