Imagine um candidato avesso a comícios, dono de grande agência de notícias que não fala com repórteres, supercontrolador e que, além de tudo, almeja ser aclamado numa das cidades mais anárquicas e liberais dos Estados Unidos. Quais serão as chances de alguém, reunindo todas estas características, se eleger prefeito de Nova York? A maioria dos analistas políticos, como Elizabeth Puentes, consultora do Partido Liberal no Estado, não aposta um centavo em semelhante concorrente. “Numa cidade onde os círculos políticos têm a mesma dinâmica e ética de um navio pirata, um candidato nesses moldes não dura nem até o meio da campanha”, diz Puentes. Mas e se o mesmo azarão for um empresário reconhecido mundialmente, um self-made man que comanda uma das maiores empresas de comunicação do planeta, possui na carteira algo em torno de US$ 4 bilhões, dos quais planeja gastar entre US$ 25 milhões e US$ 100 milhões na campanha? Estaria se repetindo o enredo de um clássico do cinema: o filme Cidadão Kane (1941), de Orson Welles. Quem tenta a façanha é Michael Bloomberg, herói das bancas de corretores da Bolsa de Valores e imperador dos dados financeiros que movimentam o mundo globalizado. E, agora, pré-candidato republicano para as eleições à prefeitura em 6 de novembro próximo. Aos 59 anos, ele se auto-intitulou “Cidadão Mike”, na esperança de que a vida imite a arte e sua campanha seja uma superprodução digna das telas.

Contam-se tantas histórias de empresários endinheirados, sonhando em se eleger, quanto de fortunas gastas em tentativas frustradas. O mais famoso é o lendário barão de imprensa William Randolph Hearst. Em 1905, ele montou uma campanha independente para conquistar a prefeitura nova-iorquina. Só não foi coroado porque a corrupta máquina eleitoral do Partido Democrata da época roubou descaradamente a eleição. A cidade perdeu um mandatário autocrata e colorido, mas o mundo ganhou um filmaço: Hearst foi o inspirador de Cidadão Kane. Resta saber se o Cidadão Mike repetirá a história como farsa, tragédia ou triunfo.

As credenciais de Bloomberg são respeitáveis. Ele tem o apoio de Rudy Giuliani – cuja administração os cidadãos comuns desejam ver continuidade – e do governador do Estado, George Pataki. Para arregimentar esta formidável artilharia em suas trincheiras, o empresário, que sempre foi um democrata de carteirinha, trocou as cores de sua farda e agora enverga o uniforme do Partido Republicano. A virada de casaca tem explicação fácil: o campo do Partido Democrata já está lotado, com nada menos que quatro candidatos fortes disputando a indicação. Já entre os republicanos existe uma espécie de vácuo, e Giuliani não tinha herdeiros aparentes.

Questão de método – O Cidadão Mike não gosta de falar com repórteres. Entrevistas exclusivas com o candidato são raríssimas. O máximo que a súcia de jornalistas consegue são contatos em também raras entrevistas coletivas que mais se assemelham a sessão de tratamento de canal para Bloomberg. “Ele é vaidoso e está acostumado a mandar em repórteres. É difícil para Mike aceitar o fato de que terá de dar satisfações a esta mesma categoria”, diz uma ex-funcionária brasileira do serviço de notícias em português da Bloomberg, que, por motivos que se verão, exige o anonimato. E com sua análise, ela pode ter tocado numa ferida exposta. “Vou administrar a cidade com a mesma capacidade e tenacidade, os mesmos métodos e idéias com que administro com reconhecido sucesso as minhas empresas”, disse o candidato numa coletiva reservada apenas a jornalistas credenciados pela polícia de Nova York. “Nossos clientes acreditam que caminhamos sobre as águas. E caminhamos mesmo. Vamos fazer isso também na prefeitura”, diz. Mas a operação desse milagre causa arrepios na espinha de quem conhece por dentro o modus operandi das empresas Bloomberg.

Mike é um empresário que encontrou enorme sucesso através de méritos próprios e com muita luta. Filho da classe média da cidadezinha de Medford, Massachusetts, ele mesmo diz que foi um dos poucos alunos da escola local a chegar à universidade. E pagou com trabalho próprio as mensalidades na Johns Hopkins University e depois no curso de administração de empresas da prestigiosa Harvard. Seu pé chato o livrou do Vietnã, depois de formado em 1966. Foi lutar nas trincheiras da empresa financeira Solomon Brothers, em Wall Street. Entrou como soldado raso e chegou a general: foi feito sócio minoritário da firma em 1972. Mas em 1981 a Solomon foi vendida e colocaram o guerreiro prodígio na rua. Sua demissão lhe valeu US$ 10 milhões, com os quais ele começou imediatamente a Bloomberg, um banco de dados financeiros operados com um sistema computadorizado próprio e sob o regime de assinatura. Em 1982 foram vendidos 20 terminais de serviços para a gigante financeira Merrill Lynch. Quase 20 anos depois a Bloomberg tem 160 mil assinantes de terminais espalhados pelo globo. Cada terminal custa em média nos Estados Unidos US$ 1.500.

Estrito controle – Para aumentar ainda mais seu poder globalizado, a Bloomberg montou em 1990 uma gigantesca agência de notícias com serviços em vários idiomas, inclusive o português, com 80 escritórios espalhados pelo mundo e 1.200 jornalistas competindo como gladiadores por notícias. Ao todo Mike tem sob sua batuta sete mil funcionários. A todos ele dá a palavra final, exigindo fidelidade incondicional. Além disso, são corriqueiras as jornadas de trabalho de 12 horas, em que uma saída para o almoço é vista com franzir de sobrancelhas. Mas é na eterna vigilância que mora a chave do sucesso. “No prédio da Bloomberg existem câmeras de tevê espalhadas por todos os cantos. Além disso, os funcionários são obrigados a passar um cartão magnetizado em leitores eletrônicos na porta de cada setor. Assim, os movimentos de todos são registrados e é possível saber exatamente onde cada um está a todo momento”, diz a brasileira que labutou na colméia Bloomberg. Conta-se que no escritório de Washington os jornalistas instalaram um telefone dentro de um armário, único local onde se pode ter um pouquinho de privacidade nas chamadas. Os e-mails também são revisados e um programa puritano impede que palavrões sejam escritos nos terminais.

Até agora Mike não revelou muito de sua plataforma administrativa. Faz planos de espalhar câmeras de vigilância pela cidade e instalar um programa de filtro de palavrões nos computadores de todas as repartições públicas municipais. Ou seja, se eleito, o Cidadão Mike pode misturar o enredo de Cidadão Kane com o do livro 1984, de George Orwell (1903-1950), em que a entidade Big Brother vigia a todos. Ambas as histórias, como se sabe, acabam mal.