Era o início da tarde, já passado o almoço do domingo 29, quando a Central de Abastecimento do Estado do Rio de Janeiro (Ceasa) foi invadida por uma horda de famintos. Mais dramático do que o saque era o mar de lama e cinzas que as pessoas, na maioria mulheres e crianças, enfrentavam à procura de alimento. Após dois dias de chuvas, o que havia restado do incêndio – que lambera o pavilhão 41 da Ceasa uma semana antes – já começava a exalar um odor putrefato, que não conteve o desespero dos moradores das favelas vizinhas. As cenas, chocantes, têm tudo para ganhar o mundo como símbolo da miséria brasileira, representada pelo bairro de Acari, na zona norte, de onde saíram os homens-bichos. Metade da população de Acari sobrevive com R$ 82 mensais, a renda per capita é de R$ 115, o índice de analfabetismo está em 16,17% e a expectativa de vida em 56 anos, segundo estudo do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud) feito em parceria com o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), do Ministério do Planejamento. “É desolador. O Brasil tem riqueza para erradicar sua miséria, só que os R$ 120 bilhões aplicados na área social não atingem os miseráveis”, contabiliza Ricardo Henriques, doutor em economia e professor do Ipea, que trabalhou no Pnud.

O primeiro alvo de domingo foram caixas de maçãs de uma câmara frigorífera. Esgotado o fruto, para aquela gente mais do que proibido, foi a vez de fuçar os escombros, de onde saíam sacos de feijão, arroz, leite e café, latas de óleo e outros alimentos chamuscados. A desempregada Cristiane Nascimento, 28 anos, festejava o pudim de leite condensado que faria para a filha Pamela, dez anos, uma das crianças que garimpavam os restos como se buscassem pepitas de ouro em Serra Pelada. O presidente da Associação Comercial dos Produtores e Usuários do Ceasa, Waldir de Lemos, tentava alertar as pessoas para os riscos de consumir alimentos em fase de deterioração. Em vão. “Entre a fome e o risco de ficar doente, não vou escolher a fome”, era a resposta.

Na manhã seguinte, a multidão cresceu ainda mais. Os 70 policiais foram insuficientes para controlar cerca de mil pessoas. Como apontar uma arma para uma mulher levando um saco de arroz ou uma criança com pacotes de macarrão? A multidão só foi embora lá pelas 16h, com o reforço do 9º Batalhão da PM. Para Rosemary da Silva, 22 anos, o incêndio no pavilhão 41 foi uma bênção, que garantiu almoço com sobremesa para seus filhos Rayene, cinco anos, e Lucas, três.
 

Doentes – Há quanto tempo eles não viam tanta fartura, mesmo correndo o risco de engrossar a nefasta estatística das doenças infecciosas na região? Para Ricardo Henriques, do Ipea, no Brasil a miséria não tem CPF. “É necessário um mapeamento para tornar essas Rosemarys visíveis e criar políticas sociais que as atinjam, como já acontece na Colômbia e no México.” Os números da miséria no Brasil são assustadores. Em 1993, foi lançado um mapa da fome que chegou a 32 milhões de brasileiros, número superior às populações do Canadá e Argentina. Novos estudos confirmaram índices dignos dos mais miseráveis países da África. Em recente pesquisa do Instituto de Cidadania, uma ONG de São Paulo, estimou-se o número em 40 milhões. No último estudo da Fundação Getúlio Vargas, a situação aparece ainda mais aterrorizante: são 50 milhões de pessoas com renda mensal abaixo de R$ 80, ou seja, 29,3% da população do País. “Acari foi um tapa na cara de quem ainda acha que estamos perto de entrar no Primeiro Mundo. A culpa é da concepção de desenvolvimento dominante no Brasil, de favorecimento ao capital financeiro”, aponta Luiz Antônio Machado, do Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro, doutor em antropologia pela Universidade de Rutgers, em New Jersey, EUA.

Dramas como os de Acari costumam mexer com a consciência das pessoas solidárias. Mesmo assim, os números da fome só fazem crescer. O coordenador de Segurança Alimentar do Instituto de Análise Social e Econômica (Ibase), Francisco Menezes, economista com mestrado em desenvolvimento agrícola, participou das campanhas de Betinho contra a fome e sabe que os resultados são pífios. “O assistencialismo não pode abrir mão de uma cobrança de medidas efetivas do governo”, alerta. Sem fazer muita força, Menezes aponta iniciativas que não representariam custos absurdos. A distribuição de merenda escolar durante as férias, quando aconteceu o saque, seria a mais simples delas. Outra iniciativa fácil, de resultados imediatos, é melhorar a qualidade nutricional das merendas. Só essas duas medidas poderiam evitar que as crianças machucassem as mãos cavucando aquele lixão. Experiências como o restaurante popular da Central do Brasil, onde se come uma refeição consistente por R$ 1, também poderiam ser multiplicadas.