A baiana Gal Costa nega com todas as forças dos orixás que, a exemplo de seu conterrâneo Dorival Caymmi, um preguiçoso nato, ela também esteja contaminada pelo vírus do ócio. Mas parte de seu mais recente álbum, De tantos amores, prova o contrário. Em 12 canções arredondando o tema do romantismo – à exceção da faixa-bônus Caminhos do mar, tema da novela global das oito, Porto dos Milagres –, cinco são regravações do repertório da cantora. Sendo que a guarânia Índia já tinha duas versões anteriores, a primeira no LP Índia, de 1973, e a segunda em Gal tropical, de 1979. Não se sabe a quem se deve o crédito das escolhas. Se à estranha presença do diretor de televisão e cineasta Daniel Filho, autor da idéia de fazer um “disco temático”, se a Wagner Tiso, que com Daniel fez a produção musical, ou se à própria intérprete. “As grandes cantoras americanas já gravaram muitas músicas repetidas, com arranjos diferentes”, justificou Gal Costa a ISTOÉ.

Realmente, não há nada de condenável em revisitar o próprio repertório. O problema é selecionar tantas regravações que, a bem da verdade, não acrescentam nem superam as originais. Preguiça à parte, o restante do repertório, agora sim, merece atenção. Começando por A última estrofe, de Cândido das Neves, antiquíssimo sucesso de Orlando Silva, que Gal conta ter ouvido durante a sua juventude na Bahia, antes mesmo de se tornar uma estrela. A canção é de uma beleza extrema e deveria ser a faixa de abertura. Mas há outros bons petiscos. Dama sofisticada, título em português para a ótima versão de Geraldo Carneiro de Sophisticated lady, de Irving Mills, Mitchel Parish e Duke Ellington, caiu como uma luva de veludo na voz da nossa melhor cantora.

Contigo aprendi, de Armando Manzanero, outra boa e inédita versão de Geraldo Carneiro, feita a pedido de Gal porque ela não gosta da outra existente, entra na dança passional do bolero. Duas outras faixas completam o cardápio bem elaborado. Elas são a pouco conhecida Abandono, de Caetano Veloso, gravada pelo Quarteto em Cy, em 1980, sob o nome de Abandonado, e Apaixonada, de Ed Motta e Nelson Motta, composta para a trilha sonora do filme A partilha. Ambas confirmam a vocação de Gal para dar rumos quase definitivos a canções com sua assinatura. Mais um motivo para ela não se acomodar, mas cavoucar, pesquisar músicas inéditas. “Eu ouvi algumas coisas novas, umas não se encaixavam na temática e outras eu não gostei. Além do que, a maioria dos compositores reserva suas melhores canções para seus próprios discos.” Não é justificativa para quem demorou e adiou o lançamento deste disco.

Explicações para o adiamento, indiretamente todo mundo sabe quais são. De tantos amores, a princípio, estava programado para ser lançado em junho, mas Gal cismou em dar apoio ao ex-senador Antônio Carlos Magalhães, que renunciou ao mandato no final de maio para não ser cassado por quebra de decoro parlamentar. Como se viu, a repercussão não foi nem um pouco favorável. “Deram uma dimensão injusta. Meu apoio moral a ACM foi ao homem que ajudou a cultura da Bahia, e não a uma atitude política. Sou uma cidadã livre, não tenho rabo preso”, diz ela. Patrulhar ideologias não faz parte da democracia. Mas há certos momentos em que, como ensina Dorival Caymmi, a melhor opção é continuar balançando na rede.


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