Autor de achados como Baiano burro nasce morto, o compositor Waldeck Artur de Macedo, mais conhecido como Gordurinha, foi um debochado com pedigree de inteligência, só que nunca levado muito a sério. Mas, aos olhos atuais, ele pode ser considerado um visionário. Em 1959, numa parceria com Almira Castilho, eternizou a expressão samba-rock na clássica Chiclete com banana, imortalizada na ginga de Jackson do Pandeiro. Há mais de 40 anos, portanto, em seu delírio profético Gordurinha antecipava o encontro da malandragem do samba com o balanço do rock americano. Uma verdade que só foi acontecer de fato no final dos anos 60, quando Jorge Ben – hoje Jorge Ben Jor – com seu violão magnético se uniu aos integrantes do Trio Mocotó e seu vanguardista naipe percussivo. Nasceu dali uma música cheia de bossa e suingue. Um samba aditivado por letras ingênuas e refrões grudentos, que davam o perfeito sustento à batida genial e inconfundível de Jorge Ben. Três décadas depois, o samba-rock está de volta – calcado exatamente nas suas origens –, ressuscitando antigos artistas, formando outros tantos e, acima de tudo, fazendo a moçada sedenta por novidades redescobrir o prazer de dançar junto.

A maior prova do fôlego do “novo” fenômeno musical aconteceu no concorrido lançamento do álbum Swing & samba-rock, do guitarrista e cantor Marco Mattoli e seu grupo Clube do Balanço, no domingo 29, no paulistano Blen Blen Club, que naquela noite bateu recorde de público. Mattoli está entre os expoentes da nova geração, em sintonia com o gênero que volta à ribalta através de uma trajetória curiosa. Quem primeiro pinçou os clássicos superbalançados de Jorge Ben foram os DJs, que faziam – e ainda fazem – ferver as pistas de casas noturnas como Jive e Grazie a Dio, ambas em São Paulo. Como resultado, a onda desencadeou uma busca pelos antigos vinis, hoje disputados a preço de ouro, gravados por gente como Bebeto, Marku Ribas ou Luís Wagner. Atentas à mínima movimentação, principalmente as que não impliquem grandes investimentos, as gravadoras começam a tirar do baú o som cultuado. A Universal Music, por exemplo, num projeto do titã Charles Gavin, acaba de relançar em CD quatro antigos LPs de Jorge Ben, entre os quais África Brasil, de 1976, considerado um clássico do gênero.

O DJ paulistano Rodrigo Furtado Hernandez, 26 anos, o craque dos toca-dicos do Grazie a Dio, por reverência até abdicou da vaidade típica de criar sons ao vivo. “Quando toco samba-rock, não me considero mais um DJ, e sim um bailero. Não interfiro em quase nada.” Na pista, é difícil não se entregar ao balanço das músicas, apesar de os iniciados, de certa forma, promoverem a timidez dos sem-cintura com passos supercoreografados. Diante da avidez da frequência, Hernandez foi obrigado a garimpar em sebos e feiras de antiguidades vinis antigos e compilações piratas feitas em CD especialmente para abastecer a Europa, onde a onda com sabor cult leva a rapaziada ao delírio. Em Londres, por exemplo, as noites batizadas de Bat Macumba são o maior sucesso.

Mercado – Novos discos, contudo, começam a suprir a efervescência do mercado. Neste mês, chega às lojas o trabalho que marca a volta do Trio Mocotó – formado por João Parahyba, Nereu Gargalo e Luiz Carlos Fritz –, depois de 28 anos sem atividade. Não por acaso, o CD chama-se SambaRock. Contraditoriamente, Parahyba, líder do Trio Mocotó, considera pobre a definição. “Nós não tocávamos nem samba, nem rock, nem bossa-nova, era algo meio torto”, define. “Fazíamos uma música balançada e alegre que nasceu de uma situação casual. Não quero ser inventor de nada”, desabafa. SambaRock, o disco, faz jus ao caráter de celebração, acrescido de algumas modernidades. A faixa Krioula, por exemplo, espécie de emblema do gênero, ganhou um revestimento eletrônico de fundo, traço vindo da fase na qual Parahyba teve como parceiro mais constante o produtor iugoslavo radicado no Brasil, Mita Subotic, o Suba, morto em 1999. Mas o humor e o descompromisso nas letras foram preservados.

Enquanto a movimentação musical recoloca veteranos na trilha dos bailes, há gente nova ocupando espaço. O paulistano Marco Mattoli, 36 anos, vem sendo apontado como um dos responsáveis por remover o limo que encobria o samba-rock, principalmente entre a classe média consumidora de discos. “Samba-rock tem que soar clássico, o fino, não pode soar moderno. Em samba não existe novidade, existe raridade”, afirma Mattoli. Antes de subir no palco do Blen Blen Club, ele percorreu os salões da periferia paulistana organizando festas na Cohab Itaquera, um dos poucos lugares onde o estilo se manteve vivo. O DJ paulista Cláudio Luís da Costa, 45 anos, que conduz noites no Jive e no Blen Blen, também chegou a frequentar vários desses encontros. “Tem bastante gente que antes curtia rap e agora passou a gostar do samba-rock. É bom porque abre a cabeça da moçada da periferia, que sai da droga, esquece a vida dura.” Nos bairros de classe média, onde se localizam os clubes-residência deste tipo de som, já se vê uma perfeita integração racial, com gatinhas neo-hippies junto a negras belíssimas, a maioria dentro de um visual anos 70, e rapazes cheios de intenção e vergonha por não saber dançar.

Como todo movimento, o samba-rock também elegeu sua musa. Ela é a paulistana Paula Lima, 30 anos, cantora que despontou no grupo Funk Como Le Gusta e recentemente se lançou na carreira solo com o álbum É isso aí. “A moçada está achando que se trata de um ritmo novo, que caiu no gosto popular pela propaganda boca a boca. É uma música sofisticada, mas não é cabeça. É o fim do cinismo e da burocracia na música brasileira”, diz ela, que tomou gosto pelo balanço na adolescência, frequentando os bailes black do Chic Show. Num embalo completamente diferente, o guitarrista, percussionista e cantor carioca Seu Jorge, 30 anos – ex-integrante do grupo Farofa Carioca, que está estreando na carreira solo com o disco Samba esporte fino –, descobriu os encantos da música no teatro amador, depois de ter purgado um período como morador de rua. Seu Jorge não faz exatamente samba-rock. Mas, como na luta pela fama vale tudo, ele tratou de se enturmar. Basta ouvir a faixa Carolina, inspirada no balanço Jorge Ben. Este, por sinal, até o momento não abriu a boca para se manifestar. Mesmo porque apenas reconhecimento não aumenta o saldo bancário de ninguém.

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A batucada brasileira do Tio Sam

Marina Caruso

O gingado dos braços lembra o velho jeito rock’n’roll de sacolejar. Enquanto os rodopios se assemelham ao suingue, que marcou a geração dos anos 40. As pernas, no entanto, pouco têm a ver com os ritmos americanizados porque para acompanhar a febre que traz de volta aos clubes noturnos o hábito de dançar junto é preciso muito samba no pé. Em São Paulo, esta habilidade marca a principal diferença entre os vários adeptos do samba-rock. Negros esnobam agilidade nas coreografias dançadas a dois, a três, misturando ou não pessoas do mesmo sexo, sem nenhum problema. Importante é se divertir dando mini-shows nas pistas. Quanto aos brancos, chamados de “pernas-de-pau”, resta o tortuoso aprendizado empírico ou então ficar na mera condição de espectador.

Não foi à toa que o número de pessoas à procura de aulas de samba-rock cresceu expressivamente, como explica o instrutor Inácio de Souza Júnior, conhecido como Moskito no circuito do samba. “Os negros estão dominando as pistas da classe média. Quem não sabe dançar fica intimidado, por isso procura aprender”, explica ele. Desde que começou a dar aulas do gênero na periferia, em 1996, Moskito viu seu número de alunos pular de 14 para 150 depois da nova onda. Acompanhado da parceira Andréa Santos, ele ensina os interessados nas próprias casas noturnas que tocam samba-rock. Nos paulistanos Blen Blen e Avenida Club, quem desembolsar R$ 5 a mais no valor da entrada tem direito a uma hora de aula com a dupla, antes de as pistas ferverem. O providencial empurrão tem ajudado a crescer o número de fiéis do ritmo.

Mas são os decanos que ainda reinam absolutos. A operadora de telemarketing Mayra Alves, 22 anos, e o estudante de música Nelson Neto, 24, cresceram escutando samba-rock em suas casas e dançando nos salões da periferia. Hoje, consideram positiva a invasão do gênero nos clubes da classe média. “Agora, podemos frequentar todas as pistas de dança da cidade e ouvir o tipo de música de que mais gostamos”, pondera Nelson, habitué do Blen Blen e do Consulado da Cerveja, casa do pagodeiro Netinho, ex-integrante do Negritude Jr., na zona norte de São Paulo, que começa a aderir com força total ao renovado balanço.
 


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