Um dos maiores espiões da história das operações dos serviços de inteligência da Rússia nos EUA era tão secreto, mas tão secreto, que nem mesmo os russos sabiam sua identidade. No entanto, a qualidade do material confidencial, que durante 15 anos foi fornecido pelo misterioso agente, servia de prova concreta de seu valor e dedicação. Tanto que, já em seu primeiro contato com a KGB (o antigo serviço secreto soviético), ainda nos tempos da guerra fria, ele entregou o nome de três espiões soviéticos – Valery Martinov, Sergei Motorin e Boris Yujin – que estavam fazendo jogo duplo sob contrato com os americanos. Moscou já conhecia a identidade daqueles agentes – revelados por Aldrich Ames, um funcionário da CIA que já passava informações para os soviéticos e seria preso apenas em 1994. Para não ser descoberto, os cuidados com a segurança, idealizados e exigidos pelo novo informante, mostravam os requintes de um estrategista escolado nas técnicas de contra-inteligência. A começar pelos canais de comunicação. Todos os contatos eram feitos através de bilhetes – assinados com os nomes de guerra: Ramón, R. García ou simplesmente “B” – deixados na base de uma pontezinha de madeira num esquecido parque dos subúrbios de Washington. Por tudo isso, causou surpresa até mesmo em Moscou a prisão de Robert Philip Hanssen, que passara 27 de seus 56 anos trabalhando para o Federal Bureau of Inteligence (FBI, a agência americana responsável pelas ações de contra-inteligência doméstico). No domingo 18, agentes federais prenderam Hanssen a poucos metros da ponte no parque que lhe servira desde 1985 como ponto de entrega de documentos e coleta de dinheiro. Nas mãos deste que é considerado o maior traidor da história do FBI, estava um saco de lixo contendo US$ 50 mil. Era o pagamento pelo último serviço prestado aos russos.

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Um agente do FBI que espionava para os russos, não ostentava sinais de riqueza e buscou inspiração no legendário agente duplo britânico Kim Philby

Boris Labusov, o porta-voz do serviço de inteligência russo, resumiu bem a situação: “Os sucessos da inteligência só são revelados depois de um fracasso.” As autoridades americanas não comentam como conseguiram quebrar o esquema do agente duplo, mas sabe-se que tiveram a ajuda de alguém de porte na agência rival. O FBI colocou as mãos num dossiê que, apesar de não dar o nome do traidor, mostrava uma longa lista de segredos passados por ele. “Estas coisas são como peças de um quebra-cabeça. Se você for juntando as partes com cuidado, o resultado será um retrato do culpado”, disse a ISTOÉ Frank Rich, ex-agente graduado do FBI.

 

 

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Aldrich Ames, preso em 1994, ex-agente da CIA

Robert Hanssen era funcionário da elite do Bureau, que ao longo da carreira assumiu cargos importantes e de grande responsabilidade. Ao ser preso, ele era supervisor da área de contra-inteligência no QG do FBI em Washington. Cidadão acima de qualquer suspeita, Hanssen tinha acesso a documentos ultra-secretos, inclusive àqueles que poderiam alertá-lo de investigações sobre suas atividades. Pai de família exemplar, costumava frequentar a igreja aos domingos, junto com seus seis filhos. Nunca foi de ostentações – ao contrário de Aldrich Ames, da CIA, que chamou a atenção sobre seus gastos ao chegar no trabalho pilotando um automóvel Jaguar do ano. Hanssen tinha um modesto Ford Taurus 1997 e uma Kombi 1993. Morava numa casa confortável, mas sem luxos em Vienna, um subúrbio de Washington. Sua figura sorumbática, acentuada pelos ternos pretos que sempre usava, lhe valeu entre os colegas o apelido de “Agente Funerário”.

O que ninguém sabia é que esse burocrata apagado mantinha uma identidade secreta propensa aos grandes riscos e aventuras. Numa das comunicações aos agentes que eram seus contatos na embaixada russa de Washington, ele dizia que havia decidido ser um espião aos 14 anos, depois de ler o livro de memórias do legendário espião britânico Kim Philby, que entre 1933-1951 passou informações vitais para os soviéticos. Philby é figura mitológica, um comunista convicto que trabalhava por ideologia e fugiu para Moscou em 1963 antes de ser agarrado. Hanssen, porém, não tinha pruridos ideológicos: operou tanto sob o comando de comunistas quanto dos atuais capitalistas da Rússia. Para isso recebeu cerca de US$ 1,4 milhão, sendo US$ 600 mil em dinheiro vivo e outros US$ 800 mil em diamantes depositados numa conta aberta por seus empregadores em Moscou. Esse dinheiro, diga-se, foi pouco usado pelo espião. Sua recompensa maior era o jogo da alta espionagem.

O castigo para esta dúbia distinção pode ser a morte. Hanssen sabia disso quando enviou a mensagem a seus empregadores russos em novembro último. “Mudanças recentes nas leis americanas agregam a pena capital para casos de espionagem que resultem em morte.” E foi exatamente o primeiro trabalho prestado por Hanssen que pode ter selado a sua sorte. Não fossem os fuzilamentos dos russos Valery Martinov e Sergei Motorin, o espião misterioso poderia escapar com vida de sua vida de aventuras.