Prensa Três
Cardoso: bandeira da solidão ostensiva dividida com Clarice Lispector

Uma dor crônica, silenciosa, que corrói o espírito, embota os sentidos e aniquila qualquer esperança, deixando um eterno travo amargo na boca crispada. Em essência, essa é a matéria-prima do escritor mineiro Lúcio Cardoso (1912-1968), autor de uma obra que escancara, sem dó nem piedade, a triste sina das almas solitárias e pequenas e que volta a público em O desconhecido e Mãos vazias (Civilização Brasileira, 320 págs., R$ 35), edição dupla de duas novelas esquecidas, respectivamente escritas em 1938 e 1940, mas hoje colocadas entre as mais instigantes da literatura brasileira. Autor introspectivo e denso, Cardoso divide com Clarice Lispector a bandeira da solidão ostensiva, mesmo que por trilhas bastante distintas. Seus personagens nunca gargalham, no máximo sorriem amarelo ou riem de nervoso. Falam pouco e sofrem muito, sempre perambulando solitários.

Em O desconhecido, o autor mostra um homem chegando a uma fazenda para se envolver tragicamente num triângulo de paixão e ódio reprimidos. O homossexualismo nada caricato do forasteiro é uma nota ostensiva no perfil do personagem, que muito incomodou a sociedade mineira da época. Não menos incômoda é a protagonista de Mãos vazias, uma mulher que, ao ver seu filho morrer após longa agonia, desafia as convenções e a moral de uma pequena cidade. Em seus gestos não há heroísmo, apenas o impulso animal. Seu silêncio, sua frieza, a incapacidade de sofrer a dor a berros carpidos, atordoam o leitor desavisado. A sensação de ter levado um soco na cara é inevitável.