André Dusek/Ricardo Stuckert

No começo da tarde da segunda-feira 19, o senador Antônio Carlos Magalhães (PFL-BA) entrou pela garagem do prédio da Procuradoria da República no Distrito Federal com o propósito de trocar munição com o Ministério Público. Estava atrás de documentos e de uma gravação que comprometeriam o presidente do Senado, Jader Barbalho (PMDB-PA), e decidido a dar uma punhalada no presidente Fernando Henrique Cardoso, a quem culpa por sua humilhante derrota na guerra pelo comando do Congresso.

Depois de ter desempenhado papel decisivo para impedir que as denúncias contra o ex-secretário-geral da Presidência da República Eduardo Jorge Caldas Pereira fossem apuradas, ACM reabriu o caso EJ. “Os dados que vocês receberam do Eduardo Jorge estão incompletos. O que pega Eduardo Jorge são os sigilos bancários de 94 e 98. Se pegar o Eduardo Jorge, chega ao presidente”, assegurou, para surpresa dos procuradores. Na realidade, ACM estava fazendo seu habitual jogo duplo: pelas costas, engrossou a voz e atiçou o Ministério Público contra o presidente, enquanto no discurso que pronunciou no dia seguinte no Senado afinou, numa tentativa de manter intacto seu naco de poder no governo federal. Mais um tiro no pé. “Isso é coisa de chantagista”, desabafou Fernando Henrique, ao ser informado dessa nova traquinagem de Antônio Carlos. A interlocutores, prometeu, mais uma vez, demitir os ministros das Minas e Energia, Rodolpho Tourinho, e da Previdência, Waldeck Ornelas.

Não foi só Eduardo Jorge que ACM colocou na fogueira. Também disparou sua metralhadora giratória contra os ministros do Supremo Tribunal Federal Nelson Jobim e Ellen Gracie Northfleet, o ministro dos Transportes, Eliseu Padilha, a senadora Heloísa Helena (PT-AL), o procurador-geral da República, Geraldo Brindeiro, e o governador de Tocantins, Siqueira Campos (PFL). Acusou Jobim e Ellen de terem barrado no STF, por razões não jurídicas, uma CPI criada pela Assembléia Legislativa da Bahia para investigar denúncias de irregularidades na Companhia Docas da Bahia. “Aqui pra nós, uma coisa dele (Nelson Jobim) particular. Uma firma beneficiada tem ligação com o escritório dele e do ministro Eliseu Padilha”, atacou. Padilha também foi alvo de outros torpedos. ACM revelou aos procuradores que vai confirmar na Justiça ter chamado o ministro de “Eliseu Quadrilha”, além de insistir nas denúncias sobre falcatruas no DNER.

Na ânsia de se mostrar aos procuradores como um político poderoso e bem-informado, ACM acabou confessando um crime. Contou que tem em seu poder uma lista de quem votou a favor e contra a cassação do mandato do ex-senador Luiz Estevão, apesar de a votação pelo painel eletrônico ter sido secreta. Foi além: acusou a senadora Heloísa Helena de ter votado a favor de Estevão, atendendo a pedido do novo líder do PMDB no Senado, Renan Calheiros, também de Alagoas. “Não podemos falar porque o Luiz Estevão vai tentar anular (a cassação)”, advertiu, numa tentativa de manter sob sigilo a operação que promoveu para descobrir os votos dos senadores. Fernando César Mesquita, seu assessor, não se conteve durante a confidência do chefe e revelou aos procuradores que, durante a CPI do Judiciário, diariamente vazava para a imprensa dados sobre os sigilos bancário e telefônico de Estevão.

Monica Richter/AE/Ricardo Stuckert

Waldeck Ornellas e Tourinho, da cota de ACM, devem deixar o Ministério

Ricardo Stuckert
Alvos dos ataques do cacique baiano, Renan Calheiros e Jader Barbalho continuam trabalhando para diminuir os espaços do PFL no governo

Mais uma vez, não deu certo. Além da irritação com o que Antônio Carlos disse aos procuradores, FHC também não gostou das ameaças veladas feitas por ACM no Senado: “Aqui não se tratou de dossiê sobre Cayman – ninguém ouviu uma palavra –, não se falou de Eduardo Jorge ou Ricardo Sérgio”, ex-diretor do Banco do Brasil que deixou o governo na esteira do escândalo do grampo no BNDES. Na conversa com os procuradores, o senador baiano contou que não iria usar toda a munição de que dispõe, atendendo a conselho do jornalista Villas Boas Correia e guardaria uma parte da artilharia para depois do Carnaval. No final da tarde da terça-feira 20, FHC estava decidido a tirar os carlistas do governo com a demissão de Rodolpho Tourinho, mas resolveu adiar a canetada a pedido do presidente do PFL, senador Jorge Bornhausen (SC).

O que ACM não contava era com a reação do PMDB logo após seu discurso. Em vez de sair em defesa dos correligionários, em sua estréia como líder do partido, Renan Calheiros partiu para o ataque. Surpreendeu o cacique baiano com seis requerimentos de informações sobre operações feitas nos Ministérios das Minas e Energia e Previdência e a abertura de inquéritos para apurar negócios feitos na gestão de Antônio Carlos. Em um de seus requerimentos, Renan pediu ao Tribunal de Contas da União para investigar o pagamento, pelo governo, de uma dívida de R$ 190 milhões às distribuidoras de energia elétrica, a maioria já privatizada. A alegação para o desembolso seriam prejuízos provocados pelo atraso nas obras da usina nuclear Angra II. A papelada apresentada pelo novo líder do PMDB levanta suspeitas sobre a legalidade e o valor da dívida, que estaria superestimado. Participaram das negociações o Ministério das Minas e Energia e a Eletrobrás.

Mesmo com toda essa alardeada disposição investigatória, os partidos governistas não estão dispostos a acolher a proposta das oposições de criar CPIs para investigar as denúncias feitas no fogo cruzado entre eles. Estão perdendo uma excelente oportunidade de varrer a sujeira exposta nessa guerra dentro da aliança governista e também apurar as denúncias contra Eduardo Jorge. Enquanto essas providências não são tomadas, o governo é que fica na linha de fogo. No frigir dos ovos, o que ocorre é um partido governista acusar de corrupção ministros indicados por outro partido governista, que revida apontando roubalheira na pasta de outros ministros de Fernando Henrique. Noves fora, sobra para o presidente.

A metralhadora de Antônio Carlos
Ag. O Globo

Eduardo Jorge Caldas Pereira
(ex-secretário-geral da Presidência)

“Os dados que vocês receberam do Eduardo Jorge estão incompletos. O que pega Eduardo Jorge são os sigilos bancários de 94 e 98. Se pegar o Eduardo Jorge, chega ao presidente”

José Paulo Lacerda/AE

Heloísa Helena (senadora pelo PT de Alagoas)
“Vou dizer aqui pra vocês, a (senadora) Heloísa Helena (PT-AL) votou a favor do Luiz Estevão. Votou a pedido do (senador) Renan Calheiros (PMDB-AL). Depois, ela disse que não votou, xingou… Eu tenho a lista de todo mundo que votou a favor e contra o Luiz Estevão. Não podemos falar porque o Luiz Estevão vai tentar anular. Anistiar o Luiz Estevão? Aí quebra o Senado… Tem a opinião pública”

André Dusek

Nelson Jobim (ministro do Supremo Tribunal Federal)
“O Tribunal de Contas constatou de 17 a 20 irregularidades na Codeba (Companhia Docas da Bahia). A Assembléia criou uma CPI. A Advocacia Geral pediu uma liminar alegando que a Codeba é federal. E o Veloso (ministro Carlos Veloso, presidente do Supremo Tribunal Federal) declarou que não deu a liminar. Só daria com o total dos ministros, mas aí veio a Ellen (ministra Ellen Gracie Northfleet, do Supremo) e deu a liminar, a pedido do Nelson Jobim (também ministro do STF), que é padrinho dela. Aqui pra nós, uma coisa dele particular. Uma firma beneficiada tem ligação com o escritório dele. O Padilha (ministro Eliseu Padilha, dos Transportes) é do mesmo escritório… O Tribunal de Contas encontrou de 17 a 20 irregularidades”

Grampos
“Na gravação de corrupção dos deputados está na cara que as vozes são deles. O grampo tem valor. Não tem nada mais digno de credibilidade do que uma voz. Enquanto ministro, nunca mandei fazer esse tipo de investigação. O SNI botava militares como operários, vestidos de macacão, dentro da telefônica para fazer a escuta”
Jader Barbalho (presidente do Senado Federal)
“Um empresário de Mato Grosso me procurou, chorou em minha casa. Ele pagava a Jader. Tinha de dar a entrada do dinheiro no Basa (Banco da Amazônia). O cara do Ministério Público estadual fez sumir os cheques que incriminavam o Jader. O banco, que era o Itaú, passou tudo para o Banco Central. Mas só me dão se eu entrar com uma ação popular ou uma CPI. Parece que esse processo já até prescreveu. (…) O governo participou da operação para ajudar o Jader, mesmo sabendo desses casos de corrupção no DNER”
André Dusek

Eliseu Padilha (ministro dos Transportes)
“Eu vou provocar, acusar. Eu tenho uma estratégia, vou acusar e ele vai me interpelar. Aí eu vou confirmar que eu chamei ele de Eliseu Quadrilha e que a quadrilha dele é essa mesmo. E vou pedir a exceção da verdade”

Siqueira Campos (governador do Tocantins)
“O Jader está enrolado com o Siqueira no Tocantins. Tudo que tem de irregularidade lá o Jader está junto”
Discurso
“Amanhã vou fazer um discurso calmo, sem xingamentos. Vou listar vários casos.
Mas como tem gente na imprensa, o Villas Boas Correia, que me aconselhou a não
dizer tudo de uma só vez, vou guardar. Agora vem o Carnaval e não vale a pena, vou
deixar para depois do Carnaval”
Comissões
“Eles vão tentar evitar que eu vá para a Comissão de Constituição e Justiça
e a Comissão de Economia. A Comissão de Fiscalização e Controle na prática não
existe. Mas comigo passaria a existir”
Geraldo Brindeiro (Procurador-geral da República)
“ Quem é nomeado sempre quer agradar a quem nomeia. O Brindeiro tem
incomodado vocês?”

Frases de Fernando César
“Ajudei a acabar com o Luiz Estevão. Todo sigilo bancário e telefônico dele eu diariamente passava para a imprensa”

“Quem fez chantagens e ameaças em nome do procurador Miguel Kuskolv foi o Bruno, que estava no gabinete do senador Leomar Quintanilha e foi gravado por um advogado”
Fernando César Mesquita é assessor de ACM e acompanhou o senador
na conversa com os procuradores

 

Irritado com o correligionário Siqueira Campos, um dos mais ardorosos defensores da manutenção do apoio incondicional do PFL ao governo, Antônio Carlos aproveitou uma revelação dos procuradores para também bater no governador. Afirmou que Siqueira Campos e Jader Barbalho são parceiros em irregularidades que ocorrem no Estado. “Ele falou isso depois que a procuradora Eliana Torely contou que o Ministério Público havia descoberto um software para fraudar concorrências em Tocantins”, explicou Fernando César. ACM também estava descontente com Geraldo Brindeiro, que estaria engavetando a apuração de denúncias contra Jader. “Quem é nomeado sempre quer agradar a quem nomeia”, observou, numa insinuação de que a lentidão de Brindeiro seria do agrado de Fernando Henrique. No mesmo dia em que ACM tagarelava com os procuradores, Brindeiro finalmente se mexeu e enviou ofício à Receita solicitando informações sobre a existência de “procedimentos fiscais” contra ACM e Jader, relativos às denúncias recíprocas de enriquecimento ilícito.

Fotos: Ricardo Stuckert
Antônio Carlos Magalhães deixa a sede do Ministério Público, em Brasília, depois de atirar para todos os lados: derrota histórica no Senado transformada em ódio ao governo de FHC

Na moita – No mais puro estilo ACM, depois de abastecer os procuradores contra o governo o cacique baiano tentou negar o novo golpe abaixo da cintura. Primeiro, desmentiu que tivesse ido à sede do Ministério Público. Mais tarde, como havia a confirmação de várias testemunhas e ele foi fotografado lá por ISTOÉ , mudou a versão. Disse que foi visitar a representação do governo da Bahia, que funciona no mesmo prédio, e tinha como chefe até novembro do ano passado seu amigo e assessor Rubens Gallerani, afastado depois de denunciado por corrupção e enriquecimento ilícito. A tentativa de envolver o Ministério Público em sua briga contra o PMDB e o governo também não deu certo. Como os procuradores Luiz Francisco de Souza, Guilherme Schelb e Eliana Torelly não têm obrigação funcional de preservar sigilo sobre suas conversas, a mentira de ACM teve perna curta. “Segredo aqui só o que está previsto em lei, como preservar os sigilos bancário, fiscal e telefônico”, esclarece Luiz Francisco. Mesmo assim, ACM instruiu Fernando César a negar que tivesse falado aos procuradores sobre Eduardo Jorge. Confrontado por ISTOÉ com trechos que reproduziam a conversa, Fernando César acabou admitindo que Antônio Carlos deu mesmo o caminho das pedras para o Ministério Público “pegar” o ex-secretário-geral da Presidência. O assessor de ACM também disparou contra os procuradores e revelou que um deles disse na reunião que tinha em mãos gravações telefônicas que poderiam comprometer o governador do Distrito Federal, Joaquim Roriz.

Fotos: Ricardo Stuckert
Fernando César acompanhou ACM na conversa com Luiz Francisco , Guilherme Schelb e Eliana Torelly

Em meio ao fogaréu causado pela explosiva conversa com os procuradores, ACM tirou o time de campo. Na manhã da quarta-feira 21, embarcou para Miami com o propósito de curtir uns dias de férias longe de Brasília e do Carnaval baiano. Antes de ser atropelado pela revelação dos ataques feitos no Ministério Público, a disposição do senador era de ficar em silêncio até a reunião no dia 8 de março da Executiva do PFL que decidirá sobre a manutenção do apoio do partido ao governo. Com todos os blefes, chantagens e traições, ACM ainda tenta manter seus apadrinhados no governo. Além dos ministros Tourinho e Ornelas, teme as demissões dos presidentes da Eletrobrás, Firmino Sampaio Neto, e do INSS, Crésio Rolim, também seus fiéis pupilos. Teve esse objetivo o discurso que pronunciou no Senado na tarde da última terça-feira, em que repetiu ataques a Jader e Eliseu Padilha, e recuou nas críticas a FHC.