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Exames de DNA na ossada de Ricardo III comprovam que houve traição na corte inglesa e que parte dos monarcas atuais pode não carregar sangue puramente nobre. O repórter Raul Montenegro explica como os cientistas descobriram isso.

"Um cavalo, um cavalo, meu reino por um cavalo!” De acordo com William Shakespeare, essas teriam sido as últimas palavras do rei Ricardo III antes de ser morto na batalha de Bosworth, na qual perdeu a coroa britânica para a dinastia Tudor. Na peça em que conta a vida do mais contestado monarca inglês, o dramaturgo o descreve como um “aborto de porco”, corcunda “deformado, inacabado”, o “agente negro do inferno (…) determinado a ser vilão e odiar os prazeres vazios desses dias”. Recentemente, porém, ficou pronta a pesquisa que começou a revelar a verdade por trás do mito, conduzida por um time de especialistas em história, genética e arqueologia da Universidade de Leicester, no Reino Unido. O estudo descobriu com 99,999% de certeza que a ossada achada em 2012 debaixo de um estacionamento inglês pertence ao polêmico soberano, revelou suas características físicas e colocou em xeque a legitimidade de diversos governantes do país, incluindo o próprio Ricardo.

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FACETAS
Catedral de Leicester, onde Ricardo será reenterrado (acima),
retrato do soberano e seus restos mortais (abaixo)

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Isso aconteceu porque, para comprovar a identidade do corpo, os cientistas analisaram dois tipos de DNA: o mitocondrial, passado de mãe para filho, e o do cromossomo Y, transmitido pelo pai. No primeiro caso, os exames atestaram a compatibilidade genética dos restos encontrados em 2012 com dois descendentes vivos da linhagem feminina de Ricardo. Com isso, confirmaram que o cadáver é do rei. O problema ocorreu nos testes com o cromossomo Y. Eles revelaram uma quebra na cadeia paterna em algum ponto entre o tataravô de Ricardo e um sucessor do século XVIII. Ou seja, nesse período um ou mais maridos foram traídos, e vários deles podem ser pais de monarcas. “Nós não temos prova sobre onde a descontinuidade ocorreu. A maioria dos elos neste ínterim, 13 de 19, não afeta descendentes reais. Mas os seis restantes podem levantar dúvidas sobre a legitimidade de vários governantes”, diz o historiador Kevin Schürer, que conduziu o estudo. Além de Ricardo III, os afetados podem ser Eduardo IV, Henrique IV, V e VI e toda a dinastia Tudor.

A descoberta, ironicamente, põe em questão a própria reivindicação ao trono que matou Ricardo. Nobre ligado à casa York, ele cresceu e viveu durante a Guerra das Rosas, conflito que botou em choque pelo trono inglês sua família e a casa Lancaster. Para chegar à coroa após a morte de seu irmão, Eduardo IV, aprisionou os dois herdeiros e os declarou ilegítimos, usurpando o trono. Os garotos nunca mais foram vistos. Quando sua mulher morreu de tuberculose, foi acusado de envenená-la para se casar com a sobrinha. Apenas dois anos depois de assumir, enfraquecido politicamente, Ricardo foi morto numa luta contra o exército de Henrique Tudor, que também reivindicava o poder pelos Lancaster. Foi o último monarca britânico a morrer em batalha, em 1485, aos 32 anos. Seu corpo foi encontrado num estacionamento construído sobre o convento onde ele havia sido enterrado.

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Em 2013, a universidade revelou que havia confirmado a identidade de Ricardo, mas a pesquisa completa só foi publicada agora. “Nós sabíamos que os restos mortais se encontravam no local onde antes estava um mosteiro franciscano de Leicester e lá nós achamos uma ossada que parecia ser a dele”, afirma a arqueóloga e geneticista Turi King, que chefiou o projeto. Com o estudo, descobriu-se, ainda, qual era o retrato que mais se aproximava da fisionomia do rei (que pode ser visto nesta página) e que sua fama de corcunda era justificada. O monarca possuía uma escoliose severa que o deixava com um ombro mais alto que o outro. Essa característica, no entanto, só surgiu à medida que ele envelhecia e nunca o impediu de levar uma vida ativa. Os cientistas não conseguiram apurar com exatidão a causa de sua morte, mas encontraram 11 marcas de ferimentos de armas medievais, incluindo adagas, espadas e lanças.

Depois que o corpo de Ricardo III for reenterrado na Catedral de Leicester, em março de 2015, numa cerimônia aberta ao público, a busca acadêmica continuará. A fixação inglesa pelas intrigas reais e a importância histórica de se descobrir o maior número de detalhes sobre a sucessão monárquica já levam os estudiosos a querer estabelecer onde, exatamente, se deu a não paternidade na linhagem masculina. “Seria importante investigar e tentar entender onde a quebra ocorreu”, diz o historiador Schürer.

Fotos: University of Leicester