O choro da presidente Dilma Rousseff no meio do discurso feito na quarta-feira 10, ao receber o relatório final da Comissão Nacional da Verdade (CNV), deu a dimensão do momento histórico. Ex-guerrilheira, presa e torturada nos porões da ditadura militar, Dilma se emocionou por reencontrar mais uma vez o passado doloroso que marcou sua juventude e traumatizou o Brasil. No auditório do Palácio do Planalto onde se realizou a cerimônia, encontrava-se cerca de uma centena de familiares de mortos e de desaparecidos políticos do regime fardado. Com 4.328 páginas, o documento da CNV condensou o trabalho conduzido pelos comissários durante dois anos e sete meses de investigações e pesquisas feitas com o objetivo de resgatar a memória dos anos de chumbo. A solenidade simbolizou, então, o fim de uma importante fase da reconstituição das agressões e dos abusos contra os direitos humanos patrocinados pelo Estado. Mas significou também o início de um novo ciclo na busca de esclarecimento do passado obscuro. “Tenho certeza que ele (o relatório) encerra uma etapa e ao mesmo tempo começa uma nova etapa, demarca um novo tempo”, afirmou Dilma.

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INSUFICIENTE
Por causa da falta de colaboração dos militares, houve pouco
avanço no tocante à localização dos corpos, por exemplo,
de desaparecidos na Guerrilha do Araguaia (acima)

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Pelas primeiras reações ao relatório, pode-se dizer que o prosseguimento do resgate histórico tem um preço alto tanto para as vítimas quanto para os agentes da ditadura. Ainda sem saber o destino de 208 desaparecidos, os familiares permanecerão com suas vidas tragadas pela extenuante procura de informações que os ajudem a descobrir o que foi feito de seus entes queridos. Para os militares envolvidos na prática e no acobertamento das atrocidades, os ecos do passado têm o peso de um fantasma que os assombrará ainda mais com a possibilidade de ações judiciais fundamentadas no documento da CNV. Em um dos trechos mais incisivos, o texto entregue a Dilma responsabiliza 377 militares e civis pelos crimes investigados. Entre eles estão os cinco presidentes da República do período ditatorial: Humberto de Alencar Castello Branco, Arthur da Costa e Silva, Emílio Garrastazu Médici, Ernesto Geisel e João Baptista Figueiredo.

Os desdobramentos dos trabalhos da comissão se fazem necessários por dois motivos. Primeiro, porque o relatório listou 29 recomendações a serem seguidas pelas instituições nacionais para dar continuidade ao resgate histórico. Em segundo lugar, porque o esforço da CNV se revelou insuficiente para cumprir a missão que lhe foi delegada. Embora categórico no conteúdo pela riqueza de detalhes sobre, principalmente, a tortura e convincente pelas provas apresentadas, o trabalho tem falhas em alguns aspectos estabelecidos na lei que criou a CNV. De acordo com o texto aprovado pelo Congresso, o grupo tinha como objetivos procurar a verdade factual, respeitar a memória histórica e promover a reconciliação do Brasil. Dessas três metas, pode-se dizer que apenas a segunda foi cumprida em sua totalidade. O relatório final, realmente, se preocupou com a solidez dos fatos narrados. Os outros dois propósitos, porém, não foram atingidos. Por causa da falta de colaboração dos militares, a reconstituição das circunstâncias das mortes e a localização dos corpos pouco avançaram. De resultado concreto, a Comissão obteve apenas a localização da ossada do camponês Epaminondas Gomes de Oliveira, assassinado sob tortura.

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Também se mostrou frustrada a tentativa de reconciliação entre os militares e a sociedade que luta pelo esclarecimento dos episódios acobertados por seus autores. Nessa direção, uma das recomendações da CNV diz respeito ao reconhecimento, pelas Forças Armadas, de sua responsabilidade institucional pelos crimes da ditadura. A maior prova da dificuldade de conseguir um entendimento nesse ponto está na ausência dos comandantes militares na cerimônia no Palácio do Planalto. Eles nem sequer foram convidados. Quem, de certa forma, os representou foi o ministro da Defesa, o civil Celso Amorim.

De todas as recomendações, a mais dura para os militares é a que trata da revisão parcial da Lei da Anistia, promulgada em 1979 e referendada pelo Supremo Tribunal Federal em 2010. Para a CNV, a legislação brasileira deve seguir uma decisão da Corte Interamericana de Direitos Humanos, colegiado ligado à Organização dos Estados Americanos (OEA), e punir os que praticaram crimes contra a humanidade. Apesar da ligação pessoal com o combate ao regime militar, Dilma fez nesse ponto um gesto no rumo da conciliação. No discurso da semana passada, depois de reverenciar os antigos companheiros que tombaram e todos os que lutaram pela redemocratização, a presidente acenou para os militares. “Também reconhecemos e valorizamos os pactos políticos que nos levaram à redemocratização”, disse a presidente.

Os militares da reserva e da ativa rechaçam a possibilidade de revisão da Lei da Anistia. Nesses círculos, Dilma e todos os que pegaram em armas para lutar contra o regime opressivo são “terroristas”. Eles argumentam que os inimigos da ditadura também cometeram crimes e que o perdão vale para os dois lados. Em resposta ao relatório da CNV, o presidente do Clube Militar, general Gilberto Pimentel, anunciou que vai divulgar uma lista com 120 nomes de pessoas mortas pelas organizações de esquerda. Contra a posição dos militares, os que buscam reparação pelos abusos dos agentes da ditadura afirmam que os adversários da ditadura já foram punidos com mortes, prisões, torturas e exílio. Até hoje, nenhum integrante do aparato repressivo sofreu punição pelos abusos.

Fotos: Geração Editorial; Pedro Ladeira/Folhapress DIDA SAMPAIO/ESTADAO; Tânia Rêgo/ag. Brasil; Marcelo Camargo/ABr; José Cruz/ABr