Se existe uma cidade que não parece inspirar maiores neuroses em seus habitantes, é Curitiba. A pacata capital paranaense, de cuja tranquilidade e urbanidade tanto se tecem loas, seria o último cenário previsível para um roteiro de suspense. Mas não o foi para José Castello. Em seu romance de estréia, Fantasma (Record, 386 págs., R$ 35), o jornalista e um dos críticos literários mais conceituados do País se vale justamente da aparente calma da cidade para montar um labirinto kafkaniano de personagens que não fariam feio pelas vielas mais escuras e temidas do cinema noir.

É do absurdo do contraste entre o que deveria ser simplesmente lógico e o que desafia o rigor provinciano que Castello ergue sua narrativa. Ela parte da destruição pelo autor – principal personagem da trama de “o Livro”, com L maiúsculo mesmo – da obra que mostraria sob encomenda a visão de um não-nativo sobre a cidade. Não importa o conteúdo do Livro. Importa, sim, a crise do autor, lançado ao mais absoluto caos existencial por uma frase casual despejada por uma certa Maria Zamparo sobre sua cabeça: “Leminsky não morreu”. E é atrás do fantasma de um poeta morto, mas que não teria morrido sua última morte, que ele se lança desafiando deliciosamente todas as regras do bom senso.

Como fiel escudeira — sua única âncora com a realidade — está a servil Matilde, um sancho pança de vastas saias, massa sólida de lucidez que, de guarda-chuva e bacia em punho, lhe critica os desvarios enquanto alivia com banhos quentes as dores da luta travada contra moinhos não existentes. Figuras sinistras surgem das ruas durante a busca insana. O protagonista sabe que não vai encontrar Leminsky. Mas, apesar de publicamente morto e reverenciado, o ídolo maldito dos cultos locais precisa estar vivo para dar um sentido à sua inquietação. Estão por ali o inevitável Dalton Trevisan, escritor que fez de si próprio um personagem maior que sua obra. Há também a absurda anã detetive de peruca vermelha correndo pelas vias chuvosas e geladas no mesmo frenesi ensandecido do coelho de Alice no país das maravilhas.

Há ainda o crítico literário arrependido pelos ataques exagerados que fez durante sua carreira — alter ego do próprio Castello —, ridicularizado em sua circunstancial insignificância, mas constante qual eminência parda decadente ao longo de todo o livro. Mais que uma boa obra de suspense, Fantasma poderia ser chamado de uma grande obra de inquietação. É um livro de quem contempla perplexo o tanto que deixou para trás no decorrer dos anos e que agora atravessa seu caminho com a afronta da juventude. Não é, porém, um livro de memórias. De referências, talvez. É mais um registro destrambelhado de emoções que vão trombando entre si e sublinhando em cores fortes a distância entre a realidade e o que se acredita real. Um thriller irônico e cru, sem efeitos especiais, delineado pelo traço impreciso e tremido da vida como ela é.