Além de ilustres espanhóis, José María Aznar, ex-premiê do país (1996-2004), e o chef de cozinha Ferran Adrià parecem falar línguas diferentes. Ferran discursa num catalão difícil de entender; Aznar é dono de um claríssimo castelhano. Ferran é informal e agitado. Aznar é formal e comedido. Ferran transita no universo da arte e da culinária e transforma alimentos no país da cozinha; Aznar alimenta a política com a receita da conciliação e transforma palavras em diretrizes econômicas. Mas há algo de essencial que os dois têm em comum. O mago da cozinha, que fechou no auge o seu El Bulli, e o líder político, que com o seu partido de volta ao poder tenta domar a crise destruidora de milhões de empregos, desejam uma Espanha unida.

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RECADOS
"O Brasil não deveria cometer o erro de mal-interpretar os resultados eleitorais.
É preciso um novo impulso reformista", discursou Aznar.
Ele defendeu que o País trate melhor a sua classe média

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Mas cada um a seu modo. No delicado filme de animação “As Aventuras de Azur e Asmar” (2006), do francês Michel Ocelot, o sonho de encontrar a fada dos Djinns para alcançar a felicidade moveu dois jovens rivais em caminhos desafiadores. E os libertou dos males da intolerância entre os povos. A obra mostra que as diferenças entre as nações servem para revelar a pluralidade das culturas e podem unir, em vez de afastar. Nas aventuras da vida real de Ferran e Aznar, que nem mesmo são rivais, o cenário é o de uma Espanha que tenta se recuperar da crise econômica iniciada em 2008. Com uma taxa de desemprego na casa dos 23% (entre os jovens, mais de 40%), o país vive uma crise política deflagrada pelo furor separatista da Catalunha. A despeito da efervescente campanha pela independência catalã, Ferran não faz barulho, mas se mostra simpático ao status quo. Aznar ataca a ameaça da harmonia entre espanhóis. Donos de estilos inconfundíveis, ambos acreditam na paz entre as diferenças. 

Outro ponto em comum entre eles é a certeza de que o Brasil precisa mudar mais rapidamente. Na tarde da sexta-feira 28, em momentos diferentes no hotel W, em Barcelona, eles falaram exatamente disso. No auditório do prédio em formato de vela às margens do Mar Mediterrâneo, transmitiram conselhos semelhantes aos líderes brasileiros durante o 19º Meeting Internacional do Grupo de Líderes Empresariais (Lide). Recados, talvez, de quem tenha sentido na pele o baque da crise. Eis o de Ferran: “É preciso saber a duríssima hora de tomar decisões drásticas”. Eis o de Aznar: “Minha experiência me diz que o Brasil se encontra numa encruzilhada histórica, semelhante à Espanha de 2004. Me permitam dizer: o Brasil não deveria cometer o erro de mal-interpretar os resutados eleitorais. O País necessita de um segundo impulso reformista que permita forrar as melhorias do passado.”

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Doria, Aznar, Moreira Franco e empresários brasileiros

Mesmo num intrincado catalol – misto de espanhol e catalão –, Ferran Adrià encantou em sua breve fala durante o almoço com 86 empresários, artistas e senadores como Marta Suplicy (PT-SP) e Aloysio Nunes Ferreira (PSDB-SP), além do ministro da Aviação Civil, Moreira Franco. Ferran explicou o que o levou a fechar no auge o seu mítico restaurante em Roses, na Espanha. O chef hoje exercita seu espírito empreendedor dando aulas em Harvard. Partiu para sociedades em vários outros restaurantes na Espanha. E dá prosseguimento ao projeto da Fundação El Bulli, um complexo de inovação voltado à gastronomia, que está sendo construído na mesma região do restaurante que foi fechado. “Fechei o El Bulli para não fechar o El Bulli”, disse. “Foi uma decisão pela mudança”, disse.

Uma hora depois, era a vez de Aznar dar o seu contundente recado. Durante sua análise sobre o Brasil e a América Latina, ex-primeiro-ministro abordou também a crise do separatismo em seu país, alertando para os movimentos populistas. Acusou os separatistas de “colocar em perigo os fundamentos da convivência entre os espanhóis”. Classificou de grave erro a proposta de independência da Catalunha. “Não há meio-termo entre a ruptura de um país e a continuidade histórica.”

Aznar elogiou as gestões prósperas dos ex-presidentes Fernando Henrique Cardoso e Luiz Inácio Lula da Silva, mas não citou a presidente Dilma Rousseff. Mais tarde, durante o jantar no hotel, ele foi colocado em contato por telefone com FHC. “Somos muito amigos”, resumiu à IstoÉ, sem querer dar entrevistas. O ex-premiê apenas riu quando indagado por que não citou Dilma em seu discurso. Aznar e FHC aceitaram o convite para um encontro no Brasil, em abril, no Fórum de Comandatuba (BA). A expectativa é de que Mario Vargas Llosa também participe. “Cada um tem as próprias convicções, mas ouvi um estadista que conhece os valores da democracia e de um mundo sem fronteiras que valoriza os princípios que regem o intercâmbio cultural e econômico”, disse o anfitrião João Doria Jr., presidente do Lide. “Foi uma lição de democracia contemporânea.”

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A ORDEM É INOVAR
"É preciso saber a hora de tomar decisões drásticas", recomendou
o chef catalão Ferran Adrià, que fechou no auge o El Bulli,
por cinco vezes eleito o melhor restaurante do mundo

O ex-primeiro-ministro defendeu medidas para o Brasil, como a independência do Banco Central. “São necessárias reformas mais profundas que completem as reformas macroeconômicas e garantam uma economia competitiva”, disse. “Lula prolongou o projeto de prosperidade que começou com FHC, que liberou as contas públicas e atacou a inflação.” Aznar lembrou que o Brasil é o principal destino de empresas espanholas que querem investir. Para ele, foi uma decisão acertada das empresas, que somam 64 bilhões de euros em investimentos no País desde o fim dos anos 1990.

Quanto ao futuro do Brasil, Aznar vê dúvidas. “O momento precisa ser enfrentados”, diz. “Todo processo eleitoral gera incertezas e divisão social.” Ele citou a onda de protestos como manifestações de uma classe média urbana beneficiada em duas décadas de crescimento e, agora, mais consciente e exigente. “Essa classe média deve ser escutada e atendida”, disse. “Um dos objetivos de uma nação é formar uma classe média ampla, sólida e capaz de resistir aos ventos de uma crise. É a coluna vertebral de uma sociedade.”

O ex-premiê criticou ainda a inflação superior a 6% e a corrupção. “A percepção de que a corrupção e a impunidade estão na classe política ameaça a democracia. E deve ser atacada”, observou. Os recados que não pouparam também a Espanha ganharam um vigor contagiante no auditório de 100 pessoas, a maioria empresários brasileiros e alguns espanhóis. E, como se dividisse o receituário que busca prescrever para o seu próprio país, o ex-premiê despediu-se e partiu de volta às suas aventuras desafiadoras. A realidade é dura na Espanha de Ferran e Aznar.

Fotos: GUSTAVO RAMPINI/Lide