"Era mais uma festa da minha faculdade, dessa vez na casa de um colega de curso. Eu era caloura de direito da Universidade Estadual de Londrina (PR). Como de costume, a noite estava animada – as pessoas conversavam alto, embaladas por muita música e bebida. Não sei como aconteceu. Mas, de repente, acordei em uma cama que não era a minha, com um homem em cima de mim. Estava confusa, inebriada, mas consegui levantar e ir ao banheiro, sentindo algumas dores. Decidi voltar para casa e a vida seguiu. Quatro meses depois, um amigo do rapaz que ficou sobre mim naquele dia me revelou o que ocorrera: ele havia me estuprado. Com o burburinho que o caso provocou no campus, pois o meu agressor era colega de faculdade, o próprio me procurou para tirar satisfação, alegando que eu estaria espalhando boatos sobre ele. Fui me sentindo cada vez mais acuada, insegura de dividir minha história e com medo do julgamento dos outros. Cheguei a ponto de pensar que a culpa fosse minha. Até que achei melhor procurar tratamento. Até hoje, dois anos depois da violência que sofri, tomo medicamentos. Não bastasse isso, ainda tenho de cruzar diariamente na faculdade com o homem que me violentou. Foi a situação mais traumática da minha vida.”

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ATENUANTE
Após denúncias de estupros, conselho da USP proibiu
grandes eventos e bebida alcoólica na universidade

O relato acima, feito por uma estudante de direito de 20 anos, que prefere não se identificar, mostra que casos de estupro entre universitários e em universidades não acontecem apenas na Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP), instituição que está sob investigação do Ministério Público e é o foco de uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Assembleia Legislativa do Estado, instalada na terça-feira 2, desde que alunas do curso denunciaram casos de abuso sexual dentro da instituição, no mês passado. Com os episódios da USP vindo a público, outras mulheres se sentem encorajadas a denunciar seus agressores. A advogada Marina Ganzarolli, que trabalha com grupos feministas, tem sido procurada por várias vítimas de casos recentes. Uma delas é aluna da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e foi violentada por um universitário de outro campus durante o Interunifesp, evento esportivo realizado entre os dias 20 e 23 de novembro. “Não são abusos de um, dois anos atrás, são casos de duas semanas. E daqui a uma semana vai ter outro. Por isso, as universidades precisam agir para punir os criminosos”, diz Marina. Segundo a advogada, argumentar que o crime foi praticado fora do campus não exime a instituição da responsabilidade de investigar. “Quando há uma situação envolvendo dois alunos, cuja relação foi construída a partir do ambiente acadêmico, a universidade precisa, sim, se posicionar.”

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Na Universidade de Brasília (UnB), o Centro Feminista de Estudos e Assessoria (CFEMEA) recebe com frequência denúncias sobre assédio sexual e violência contra a mulher, muitos dos casos envolvendo alunas da UnB. “Há cerca de três meses, uma estudante foi estuprada por um colega da universidade nas imediações do campus. Ela fez boletim de ocorrência e professores estão se articulando em um comitê para apurar o caso”, afirma Jolúzia Batista, socióloga e assessora do CFEMEA. Ela ainda cita um trote recente do curso de engenharia no qual as meninas eram obrigadas a desfilar de calcinha e sutiã. “Percebo que o machismo é mais recorrente em cursos tradicionais, com ambiente conservador e onde há menos possibilidade de diálogo e debate”, diz Jolúzia. Na opinião da socióloga, ainda que as situações de abuso pareçam pontuais e isoladas, todas elas compõem um discurso moralista que tem tomado força. “Há um posicionamento elitista nessas universidades, uma violência simbólica contra a mulher, que é obrigada a seguir um código de comportamento.”

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Há cerca de duas semanas, o diretor da FMUSP, José Otávio Costa Auler Júnior, declarou que “as vítimas de estupro devem ter a hombridade e honestidade de comunicar pessoalmente o caso à direção”. Para Nadine Gasman, representante da ONU Mulheres Brasil, a denúncia é de fato importante, mas não se pode mudar o foco do problema, pois a responsabilidade pelos estupros não é da mulher que deixa de denunciar. “A culpa pelo ato é sempre do agressor”, diz. Segundo especialistas, esses casos são um alerta que indica que as universidades não estão fazendo o suficiente. Por enquanto, a medida mais drástica tomada pelo Conselho Gestor da USP foi proibir bebidas alcoólicas e grandes festas no campus. “Eles poderiam ter aberto um processo administrativo para investigar os acusados, mas não fizeram”, afirma a advogada Marina Ganzarolli. Diante da passividade das diretorias acadêmicas, as próprias mulheres começaram a se reunir em grupos, os chamados coletivos feministas, para prestar ajuda e apoio às vítimas de qualquer tipo de abuso. Foi o caso da estudante de Londrina, que conseguiu conversar abertamente sobre seu estupro durante uma reunião do coletivo feminista Mietta Santiago, da Faculdade de Direito da qual faz parte. “A ideia é discutirmos a emancipação feminina e o machismo no contexto universitário”, afirma a jovem. “Mais para a frente, o objetivo é apoiar alunas que tenham sofrido algum trauma e encaminhar para um psicólogo, por exemplo.” Segundo a pedagoga Maria Carolina Machado, criadora do Mapa de Coletivos de Mulheres (Mamu), há registro de 136 grupos feministas nas cinco regiões brasileiras, muitos deles em ambientes universitários.

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Grande parte desses coletivos ainda luta por coisas óbvias, como respeito, e muitos dos problemas começam já na primeira festa universitária, o trote, com brincadeiras que inferiorizam a mulher. “Se uma menina reclama, ela escuta que não tem que levar a brincadeira a sério”, diz Ana Paula Salim, 22 anos, aluna de direito da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e integrante do coletivo feminista Somos Pagu. “Um dos motivos para criarmos o grupo foi ter um espaço onde possamos conversar sobre práticas tão enraizadas que todo mundo já acha normal.” Para Jacira Melo, diretora-executiva do Instituto Patrícia Galvão, os jovens têm muita dificuldade em identificar que algumas práticas não têm graça e que são um tipo de violência. “No geral, as novas gerações, que deveriam ser transformadoras, são muito machistas e estão perpetuando a desigualdade entre homens e mulheres.” Esses casos das universidades só comprovam essa conclusão. 

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Fotos: Josimar Valerio; Fabio Braga/Folhapress; MÁRCIO FERNANDES/ESTADãO CONTEÚDO, Ryan M. Kelly/The Daily Progress/AP Photo