A eclosão das greves de policiais militares e civis não deveria ter provocado surpresa. Para quem acompanha de perto a trajetória de decadência e queda do sistema de policiamento do Brasil, que há muito tempo está na UTI, o cenário de caos e pânico era previsível. Afinal, há apenas quatro anos, 12 Estados foram tomados por um primeiro grande surto de mobilizações. E nada foi feito desde então para corrigir as graves distorções da estrutura policial. O coronel da reserva José Vicente da Silva, coordenador de Segurança Pública do Instituto Fernand Braudel de Economia Mundial, não está otimista. “Os governos já deveriam ter agido desde o movimento de 1997. Desta vez os governadores esperaram ser encostados na parede de novo e não acredito que as coisas vão mudar”, constata.

Tomando como exemplo as polícias de Nova York e de Londres, o coronel defende a criação de uma única polícia, não militarizada. Afinal, o Estado é obrigado a gastar muito mais com a existência de duas corporações. Segundo ele, o Estado de São Paulo, que anualmente desembolsa R$ 4 bilhões com a segurança pública, poderia economizar R$ 300 milhões com a unificação. José Vicente ressalta que há uma série de fatores acumulados que geraram a crise, além dos baixos salários. “Os policiais acham que não estão sendo tratados como merecem, apesar de exercerem a mais difícil das tarefas do funcionalismo público”, observa. Na lista de problemas, há o sistema de gratificações, totalmente distorcido. “Os policiais que estão na rua arriscando a pele ganham menos do que os que estão na mordomia, servindo em confortáveis gabinetes”, exemplifica o coronel. Além de defender o fim desta distorção, José Vicente propõe que os policiais que trabalham nas grandes cidades, mais violentas, recebam uma gratificação, já que estão mais expostos ao perigo.

No Rio Grande do Sul, por exemplo, delegados e oficiais da PM recebem gratificação de 220% sobre o salário por conta do risco de vida. Já cabos, soldados e agentes penitenciários, que lidam mais diretamente com a criminalidade, ganham apenas 160%. A equiparação desses porcentuais é uma das reivindicações da categoria no Estado. Outro problema é o distanciamento dos governadores com relação às necessidades da tropa. Os comandantes e chefes das polícias militar e civil, postos geralmente ocupados por burocratas, têm pouca noção dos problemas vividos pela tropa. “Por isso, os governadores não percebem as crises e não intervêm a tempo de evitar o pior”, resumiu o coronel José Vicente. Em São Paulo, o clima de descontentamento é explícito. Na terça-feira 24, policiais entregarão ao secretário de Segurança, Marco Vinício Petrelluzzi, diploma de persona non grata. “Não é um pedido da cabeça dele. Mas, se vamos falar de reestruturação, é difícil manter uma pessoa que não entende nada de segurança”, diz o presidente do Sindicato dos Delegados do Estado, Paulo Siquetto.

Um outro ingrediente que torna a situação mais explosiva é a existência de um regulamento disciplinar ultrapassado, que prevê, por exemplo, prisão de 20 dias para o soldado que chegar atrasado sem dar justificativa. “A rigidez e o autoritarismo à moda militarista provocam a apatia e o aumento do sindicalismo no meio policial”, explica o coronel. Rosicler Bonato, uma das mulheres de PMs que tomaram a frente do movimento no Paraná, lembra que a norma disciplinar seguida atualmente pertence ao Exército. “Se o cabelo de um soldado estiver um pouco maior do que o permitido, há uma advertência. Se o policial estiver com o uniforme sujo, ou a bota sem lustrar, é melhor ele nem ir. É punição na certa”, lembra.

Reféns – Os governos nunca souberam tratar desses problemas. Tampouco sabem agir corretamente diante da revolta. “Onde houve crise, houve erros. Os governadores, pelo jeito, vão continuar reféns de suas polícias”, lamentou José Vicente, que considera inaceitável qualquer atitude de negociação com lideranças grevistas que, encapuzadas e armadas, atropelaram as leis. Depois da exibição de horrores na Bahia, os policiais decidiram adiar as cobranças ao governador César Borges (PFL). Aceitaram o reajuste de 21%, mas o aumento das gratificações vai ser discutido só em dezembro. Período estratégico, quando Salvador é invadida por turistas e se prepara para o Carnaval. A ameaça não parte só dos baianos. A cada semana, surgem novos movimentos que se sentem mais fortes para reivindicar reajustes salariais. Pelo menos uma dezena deles tenta aproveitar o clima de revolta no País, que deu aos policiais uma imagem de união e de disposição para o que der e vier. Na quarta-feira 25 é dia da assembléia dos policiais civis e das esposas do militares do Pará. Em Goiás, a reunião da categoria está marcada para segunda-feira 23. No Paraná, as mulheres também tomam a liderança e prometem greve de fome. Alagoas e Pernambuco mantêm a paralisação. O efeito dominó continua.