Marlene Lopes e seus 11 filhos vivem amontoados num casebre no meio do nada. A família cresce rodeada de sujeira por todos os lados, sem luz, água ou esgoto. Esquecidos em Acari, um bairro pobre da zona norte do Rio de Janeiro, os Lopes nunca usufruíram das benesses do mundo moderno ou das melhorias apontadas pelas estatísticas oficiais brasileiras. Aos 41 anos, Marlene nem sequer chegou à categoria de cidadã. Não tem certidão de nascimento, assim como cinco de seus filhos. Maria Carolina, sete anos, e Maria das Graças, oito, nunca foram à escola nem sabem se chegarão a ir um dia. As duas filhas de Marlene engrossam as estatísticas do contingente de 2,5 milhões de crianças, segundo o IBGE, que estão fora da escola. “Estatisticamente, o País vai bem, mas em números absolutos e qualitativamente a situação ainda é crítica”, avalia uma das diretoras da Organização Não-Governamental (ONG) Ação Educativa, Maria Clara Di Pierro.

Entre 19 e 21 de setembro, na sede da Organização das Nações Unidas (ONU), em Nova York, o governo exaltará os avanços brasileiros. Todos os 157 países signatários da ONU falarão sobre o cumprimento das metas aprovadas há 11 anos na Cúpula Mundial em Favor da Infância. Naquela ocasião, os países se comprometeram a adotar 27 medidas para melhorar a situação de suas crianças. “Nosso déficit social ainda é muito grande”, admite o embaixador Gilberto Sabóia, secretário de Estado dos Direitos Humanos do Ministério da Justiça e responsável por coordenar os trabalhos sobre o Brasil. O relatório final a respeito do que foi feito aqui nessa década em prol das crianças ainda não está concluído. Faltam pequenos detalhes para que o dossiê de 160 páginas chegue às mãos do secretário-geral da ONU. Das 27 metas (19 dizem respeito à área de saúde), 14 foram parcialmente alcançadas. Dez foram atingidas plenamente e para as três restantes não há dados oficiais disponíveis. Serão mostrados na ONU os brasis que deixam os estudiosos aturdidos: o que está mais próximo de países como a Bélgica, minoritário, e o que tem 50 milhões de miseráveis e só perde para a Suzilândia, a Nicaraguá e a África do Sul em desigualdade, conforme revelam estudos da Fundação Getúlio Vargas e o Relatório de Desenvolvimento. Humano em 2001 da ONU. “De modo geral, o Brasil fez progressos. Nenhum país conseguiu atingir plenamente as 27 metas da Cúpula”, pondera a representante brasileira no Fundo das Nações Unidas para Crianças (Unicef), Reiko Niimi.

Melhorias – A Escola Tia Neuma Gonçalves, na favela da Mangueira, na zona norte do Rio, é um exemplo de contribuição para o País atingir a meta estabelecida pela ONU de acesso universal à educação básica. Na Tia Neuma, uma iniciativa do empresário da área educacional Albano Parente, estudam 360 crianças, da alfabetização à quarta série. Estudos feitos pela Ação Educativa mostram que as deficiências no País são muitas. Paulo Wagner e Adriana Alves, ambos com dez anos, trocaram no começo desse ano a Escola Municipal Edmundo Bittencourt, na Mangueira, pela Tia Neuma. Elas exemplificam as dificuldades apontadas por Maria Di Pierro. “Não sabiam ler nem escrever, eram semi-analfabetos”, avalia a diretora da escola, Márcia Dias. Apesar dos problemas, o Brasil poderá mostrar na ONU que a situação aqui já foi bem pior. O mesmo será dito em relação à saúde.

Zilda Arns Neumann, da Pastoral da Criança, fez tanto pelo Brasil que acabou indicada para o Prêmio Nobel da Paz de 2001. Seu trabalho ajudou o País a reduzir as estatísticas da desnutrição infantil. “A fome não é consequência apenas da falta de alimento”, esclarece, à frente de uma rede de solidariedade espalhada por 3.334 municípios. Cerca de 1,5 milhão de crianças são atendidas por Zilda e seu exército de voluntários. Ela explica que a iniciativa de descentralizar a distribuição de alimentos, até 1990 feita pelo Instituto Nacional de Alimentação e Nutrição, está dando resultados. Ao combater a desnutrição, o governo reduziu as taxas de mortalidade infantil. No início da década, 48 em cada mil crianças nascidas vivas morriam após o nascimento. Hoje, o índice é de 32.

“A taxa de mortalidade infantil caiu 30,6% na década”, festeja Ana Gorette, coordenadora da Área de Saúde da Criança do Ministério da Saúde. Ao mesmo tempo, a mortalidade materna envergonha. A meta não foi atingida. Pior: as estatísticas apontam para um aumento dos índices. “Cinco mil mães morrem a cada ano por complicações da gestação, aborto, parto e pós-parto”, denuncia Ana Cristina Tanaka, professora da Universidade de São Paulo (USP). A eclampsia (hipertensão específica da gravidez) continua provocando 90% dessas mortes de acordo com Ana Cristina.“Há 17 anos, a taxa de mortalidade materna está estacionada em um patamar de dez a 20 vezes superior aos indicadores do Primeiro Mundo”, compara Tanaka.
No cumprimento das metas fixadas há 11 anos, o Brasil não vai bem, mas não tão mal quanto seus vizinhos da América Latina.

Conseguimos reduzir à metade o trabalho infantil na década. Cerca de quatro milhões de crianças foram retiradas das áreas de trabalho”, orgulha-se o embaixador Sabóia. O Brasil deverá receber elogios na ONU, mas não terá como esconder a situação dos meninos de rua e a dos adolescentes infratores. Ambas são uma vergonha nacional e, se dependesse delas para avaliar o desempenho do País nos anos 90, o Brasil seria obrigado a admitir ao mundo que a década foi perdida.