Nos bastidores da Royal Opera House – tradicional e portentoso teatro situado em Covent Garden, o bairro boêmio e cultural de Londres –, uma famosa trupe de dança faz do labirinto de corredores uma festa silenciosa. As meninas de rostos de fada, com cinturinhas inacreditavelmente finas, passeiam como gatos, em passos imperceptíveis. Os rapazes, também magros, mas musculosos, repetem as mesmas cenas. Todos e todas andam sempre muito altivos, com seus invariáveis olhos azuis plantados lânguidos num horizonte qualquer, menos em quem está à sua frente. Tanta realeza faz sentido. Eles pertencem ao russo Kirov Ballet, considerada a mais importante companhia de dança clássica da atualidade, que, a partir de 1º de agosto, inicia pelo Rio de Janeiro uma série de apresentações, previstas também para outras cinco capitais brasileiras. O Kirov volta ao Brasil pela terceira vez e em plena forma. Através da produtora Dell’Arte, traz um total de 260 bailarinos, incluindo várias das suas principais estrelas, entre elas Yulia Makhalina, Faroukh Ruzimatov, Diana Vishneva, Svetlana Zakharova e Igor Zelensky. Além de assistir às performances Manon e O corsário, ISTOÉ pôde acompanhar de perto um dos ensaios da companhia russa numa das salas da Royal Opera House, cujo complexo interno é uma verdadeira cidade, com tecnologia de primeira – organização idem – e um fosso capaz de guardar quatro cenários inteiros, sem desmontá-los, que surgem no palco içados por silenciosos elevadores.

Sob os olhos da crítica e do público, pertencer ao corpo de baile do Kirov significa ter talento e consequente status no circuito das artes. Mas para alcançar este posto privilegiado seus bailarinos suam tanto quanto um operário russo. Com a diferença de ganharem um salário maior não confessado, porque o assunto dinheiro é completo tabu dentro da companhia. Na sua labuta, desfrutam de apenas uma pausa por semana e 15 dias de folga por ano. Quando estão em São Petersburgo, cidade sede do Teatro Mariinsky – Kirov é o nome internacional, ganho em homenagem a Sergei Kirov, herói da revolução de 1917 –, realizam 30 funções mensais. Não à toa, seu lema é rabota, rabota, rabota (trabalho, trabalho, trabalho).

Ao contrário do que muita gente pode pensar, um ensaio do Kirov é tão ou mais exaustivo e cruel que qualquer educação física das Forças Armadas. Durante as aulas só se ouvem o som do piano e a voz determinada, sempre num tom enérgico, do professor. Nenhum bailarino abre a boca, nem para sorrir. O suor empapa as roupas e eles rodopiam, rodopiam leves sobre aqueles pés de aparência aflitiva. Para as pessoas fora do meio é impressionante observar de perto os pés de um bailarino ou bailarina, principalmente se eles forem do Kirov. São uma coleção de veias saltadas e maceradas, com inchaços e cicatrizes que um leigo não imagina como conseguem sustentar os respectivos corpos. Enquanto se desenrola a sessão espartana, sutilmente um dos bailarinos ganha um elogio do professor. Por segundos desfaz-se a seriedade do rosto. Melhor, ele repete ainda mais orgulhoso suas piruetas, saboreando o prazer do bem realizado.

Vaidade – A vaidade é um atributo mais que necessário no mundo da dança, embora a maioria de suas estrelas negue. Igor Zelensky, por exemplo, diz que o tamanho da sua vaidade é normal. “Tento fazer o melhor possível”, disse ele a ISTOÉ. “O importante é acreditar em si mesmo e realizar algo novo todos os dias para ser bom. Estou na minha melhor forma física”, afirma o fã de Mikhail Baryshnikov. “Neste negócio, todo mundo tenta ser o melhor.” Sem dúvida, Zelensky, 31 anos, está entre eles, assim como Faroukh Ruzimatov. Ambos poderiam ser comparados – tecnica mas não artisticamente, como afirmam os mais radicais – a Rudolf Nureyev e Baryshnikov. Só não têm a mística de desertores do antigo regime comunista soviético. “Eu amo meu país, quero ajudar meu país, por isso continuo no Kirov”, determina Zelensky, que, num ataque de simpatia, coloca o Rio de Janeiro como uma de suas cidades favoritas. “No Brasil, as platéias são ótimas e as pessoas têm um grande coração”, completa.

Para a crítica de dança Helena Katz, o príncipe Siegfried da coreografia Lago dos cisnes – que será vista apenas em São Paulo – tem um talento especial. “Ele consegue combinar a força dos músculos com a velocidade dos mais esguios.” Quem também ganha a atenção dos críticos é Svetlana Zakharova, uma jovem de 22 anos, dona de um rostinho angelical, ainda em briga com as espinhas, mas que no palco se transforma na mais adulta e sedutora das mulheres, pronta para arrancar aplausos dos ingleses mais rígidos. Na estréia londrina de O corsário – a primeira apresentação em oito anos na mesma cidade –, na qual a estrela faz o papel de Medora, sentava-se na platéia ninguém menos que a ex-dama de ferro Margaret Thatcher, que não poupou elogios a Svetlana e a Ruzimatov.

Pintura de Rafael – Juntos no palco, os dois são realmente impressionantes. Svetlana, que lembra uma pintura de Rafael, e Ruzimatov, já descrito como um deus moreno da sensualidade, constroem movimentos de uma beleza de arrancar lágrimas. Os críticos, claro, sempre encontram uma falha, principalmente em Ruzimatov e seus já acobertados 38 anos. Mas para a platéia é puro deleite vê-lo esplêndido no seu narcisismo e emoção ao lado da bailarina que ergue as pernas a noventa graus com a mesma facilidade com que se levanta um braço. Não pense, no entanto, que para chegar a tal estágio eles não enfrentam dores. “Eu não sou uma boa sobrevivente da dor”, segredou Svetlana a ISTOÉ. Ruzimatov também confessou “não passar um dia sem conviver com a dor.” No seu caso, aliás, ela tem assumido outras proporções. Casado na Rússia, quando sai em excursão ele não respeita a fidelidade. Comenta-se que há tempos mantém um affair com a estrela Diana Vishneva, protagonista da coreografia Manon. Numa das performances londrinas em que não participava, o bailarino circulava macambúzio pelo teatro. Mais tarde descobriu-se que o motivo de tanta tristeza era uma briga com Diana.

Rio de Janeiro, Belo Horizonte e São Paulo terão o privilégio de, dependendo do dia, assistir a Ruzimatov no papel de Ali em O corsário, cuja história se baseia no poema do inglês Lord Byron. A ação é centrada na briga política de gregos e turcos, trazendo ingredientes como amor, intriga, rapto de mulheres e um fantástico naufrágio. A première de O corsário aconteceu no Teatro Mariinsky – um orgulho nacional –, em 1858, e até hoje é uma das peças clássicas mais aplaudidas. Os russos só precisavam contratar um cenógrafo que entendesse o clima de aventura e não transformasse o cenário num horroroso pastiche brega.

Manon, que será vista apenas no Rio de Janeiro, Belo Horizonte e Brasília, é a coreografia mais sofisticada desta temporada. Assinada por Kenneth MacMillan, considerado um dos grandes coreógrafos e criadores de pas-de-deux da segunda metade do século XX, estreou em Londres, em 1974, dançada pelo Royal Ballet. Entrou para o repertório do Kirov em março de 2000. É baseada na novela Histoire du Chevalier des Grieux et de Manon Lescaut, de Abbé Antoine-Français Prévost, escrita no século XVIII. Sua protagonista é uma jovem encantadora e interesseira, cuja meta é viver no luxo. Diana Vishneva e Ilya Kuznetsov formam um dos pares que se alternam nas apresentações. Vê-los em cena é estar assistindo a dois pássaros, tamanha a leveza de movimentos e técnica impressionante. Outro destaque é a regência precisa para a música de Jules Massenet, do maestro Gustavo Plis-Sterenberg, um argentino nato, que se criou na Rússia e tem opiniões bastante sinceras sobre os músicos brasileiros. “Como em toda a América Latina, no Brasil não há desenvolvimento técnico dos músicos. Em compensação há muita emoção, só que esta emoção é irigida para a diversão”, afirma ele. “Mas quando ela é bem administrada rende ótimos concertos.”

Esta objetividade é uma característica dos russos do Kirov. Principalmente de seu diretor, Makhar Vaziev, um bonitão de 40 anos, ex-dançarino do próprio Kirov, já divertidamente denominado no Brasil como uma mistura de Richard Gere com Andy Garcia. Quase sempre vestido de preto, Vaziev planeja cada frase com a mesma precisão dos gestos de seus comandados. “O respeito conquistado pelo Kirov está no seu sangue. Muitas gerações com extremo talento deram sua contribuição, tecendo os resultados que vemos agora”, diz. “Neste momento, minha política é precisamente cuidadosa para ver o que a companhia necessita para seu desenvolvimento. Tendo um repertório particular e bem feito pode ir longe. Quero dirigir bailarinos com cérebros.”

Dama das pérolas
Sentada num lugar nobre da platéia da Royal Opera House, ao lado de amigos e do marido, Sir Denis Thatcher, a ex-primeira-ministra britânica Margaret Thatcher só rendeu elogios ao Kirov. Toda perolada num vestido de cetim e usando um perfume tão forte quanto a sua personalidade, Thatcher, muito gentil e conservada nos seus 75 anos, respondeu para ISTOÉ as seguintes perguntas durante o programadíssimo intervalo: ISTOÉ – Quando a sra. assistiu ao Kirov Ballet pela primeira vez? Thatcher – Conheci a companhia em Leningrado (ela ainda chama São Petersburgo de Leningrado), quando ainda estava no Parlamento. ISTOÉ – Qual foi sua reação? Thatcher – Fiquei fascinada pela extrema concentração dos bailarinos. ISTOÉ – Como a sra. definiria o Kirov Ballet? Thatcher – É a dança mais perfeita que eu já vi, eles conservam uma energia muito forte. ISTOÉ – A sra. poderia citar quais os bailarinos que mais aprecia na companhia? Thatcher – Svetlana Zakharova é muito boa e Faroukh Ruzimatov é absolutamente incrível.

Agenda dos espetáculos
Rio de Janeiro, Theatro Municipal, 1° de agosto (Manon), dia 2 (Manon), 3 (Gala), 4 (O corsário) e 5 (O corsário); Belo Horizonte, Palácio das Artes, 8 (O corsário), 9 (O corsário), 10 (Manon), 11 (Manon) e 12 (Gala); Brasília, Sala Villa-Lobos, 14 (Manon), 15 (Manon) e 16 (Manon); Recife, Teatro Guararapes, 20 (Gala); São Paulo, Credicard Hall, 23 (O corsário), 24 (O corsário), 25 (O corsário) e 26 (Gala); Porto Alegre, Teatro Sesi, 28 (Gala) e 29 (Gala); São Paulo, Credicard Hall, 30 (Lago dos Cisnes), 31 (Lago dos Cisnes), 1° de setembro (Lago dos cisnes) e 2 (lago dos Cisnes)