Traudl Junge, uma das últimas secretárias do ditador nazista Adolf Hitler, o mostrou como uma figura paterna e quase dissociada do crime de extermínio de judeus, na biografia Até o fim. Agora está sendo lançado o livro de sua outra secretária, Christa Schroeder. A obra se chama Doze anos com Hitler (Objetiva, 206 págs., R$ 28,90) e também adula o homem que foi um dos símbolos máximos da crueldade humana. Apresenta- o como um “pensador profundo”, alguém “perspicaz e refinado”, capaz de surpreender a todos “através da extensão de seu saber”. Mais: segundo essa secretária, Hitler tinha “memória absolutamente prodigiosa” e possuía “a grandeza de alma de um homem culto.” Outra faceta que a autora destaca é seu poder de sedução coletiva e, em especial, o poder de assediar (sempre de forma garbosa, jamais vulgar) mulheres bonitas. O problema é que se chega a uma determinada página como se estivesse lendo a biografia de outra pessoa e não a do nazista que cobriu de sangue um período da história da humanidade.

Se a autora tivesse começado o seu livro com a frase que usou para fechá-lo (“Sim, Hitler está acometido de demência” ), talvez o leitor pudesse enfrentar a descrição de um cotidiano singular como sendo as lembranças de uma devotada funcionária que, no entanto, sabia muito bem de quem estava falando. A constatação sobre o desequilíbrio mental de Hitler, já perto de sua derrocada política e de seu suicídio em 1945, é precedida por observações de decadência progressiva só possível para quem privava de intimidade. Por esse aspecto, o livro de Christa é interessante. Mas para que serve isso? Para o objetivo de sempre: tentar entender a personalidade do homem que promoveu o Holocausto, o extermínio em massa de judeus, além dos horrores que sua Gestapo (polícia secreta) fez contra homossexuais. Já se sabia que Hitler detestava o pai porque apanhou muito quando era criança, mas Christa conta como ele decidiu enfrentar a fúria paterna: jamais chorar e suportar a surra com a frieza de um assassino. Certo dia, teve orgulho em revelar para a mãe que levara 32 pauladas, contadas silenciosamente.

Hitler nunca se casou. Foi extremamente apaixonado por sua sobrinha Geli Raubal que se matou com um tiro na boca. Conviveu mais de uma década com Eva Braun, mas só se casou com ela pouco antes de ambos se suicidarem. Sem laços afetivos sólidos, religião ou filosofia, não é difícil entender que ele achasse normal, por exemplo, adubar as hortas de seus policiais com as cinzas dos corpos incinerados nos campos de concentração. O depoimento da secretária Christa, que originou o livro atual, foi dado ao longo da década de 1930. Ficou desaparecido durante anos até ser reencontrado, há pouco tempo, por pesquisadores. No final da Segunda Guerra Mundial, com a derrota do nazismo, Christa foi presa e classificada como “moderadamente nazista.” Morreu em 1984.


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