Eu me divertia, e não tenho dúvida de que ele também.
– E o meu livro?
– O livro vai bem, mandou lembrança… quase que eu ia devolvê-lo hoje para o senhor, mas pensei melhor…
– É livro de trabalho, preciso de volta… e não tem sentido eu ter essa coleção desfalcada de um volume…
– É coleção banguela, doutor. Melhor banguela de livro que banguela de dente…

O doutor Márcio Thomaz Bastos ria, eu ria mais, até porque era extremo o meu orgulho quando ele me recebia em seu escritório, ainda o antigo da avenida da Liberdade 65, referência de São Paulo e referência de ética, talento e luta por justiça social. Eu era um jornalista em início de carreira; ele já era o doutor Márcio, e me emprestara um livro, retirado de uma sisuda série de tomos, sobre a história dos habeas corpus no STF. Nunca tive impulso para ficar com livro alheio, não gosto de quem diz que em matéria de livro há dois tolos, o que empresta e o que devolve. Mas também não nego que na minha emoção doía devolver aquela obra pelo único motivo que me envaidecia: ter algum instrumento de estudo que pertencesse ao doutor Márcio. Ele percebia isso. E nos divertíamos.

Devolvi o livro, é claro. E saí no lucro. Eu então já lhe contara sobre o meu interesse em lutar por condições carcerárias mais dignas e racionais no País e também sobre o desejo de ler a respeito do júri de Gregório Fortunato, o segurança de Getúlio Vargas envolvido no atentado da rua dos Toneleiros. A generosidade do doutor Márcio não tinha limites, serve de exemplo a fila de réus dos quais foi patrono gratuitamente. Mas para o meu ego a sua generosidade conta também porque ele me presenteou com os dois volumes de “Os Grandes Processos do Júri”, de Carlos Araújo Lima, e neles há o julgamento de Gregório – acrescente-se o valor literário de constar “edição fora de comércio”. Foi ainda o doutor Márcio quem me deu “A Questão Penitenciária”, de Augusto Thompson. Obrigado, doutor.

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Eu me divertia, e não tenho dúvida de que ele também.
A primeira vez que conversei com doutor Márcio foi sobre direitos humanos. Aonde vou, estou sempre com uma malha jogada nos ombros, as mangas penduradas no peito (mas sem nó). Eu enalteço a espécie humana pela descoberta do antibiótico, da dupla hélice do DNA e do benzodiazepínico, mas a critico pela invenção do ar-condicionado que alimenta a minha rinite. Pois bem, explico assim a regimental malha nas costas, pois nunca sei quando entrarei num freezer. O doutor Márcio estranhou porque fazia muito calor, e, nas demais vezes em que nos vimos, lá estavam meus ombros com a malha. Sempre que a outras pessoas ele se referia a mim, dizia:
– Aquele jornalista que com o maior calor está com uma malhinha nas costas…
Certa vez me perguntou:
– Mas é sempre a mesma malha?
– Claro que não, parece a mesma porque quando gosto de uma roupa já compro muitas iguais…
Doutor Márcio riu, eu ri. E nas conversas sobre criminologia ele me ensinou algo definitivo na minha formação (embora tenha morrido sem saber disso):
– Prado, a pobreza é somente um dos fatores da criminalidade.
Passei no dia seguinte a estudar o comportamento transgressor sob a ótica da psiquiatria e da psicologia social. Obrigado, doutor. 

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Eu me divertia, e não tenho dúvida de que ele também.
Restaurante Itamaraty, Largo São Francisco, estou com doutor Márcio horas antes de um júri.
– Fico ansioso como se fosse sempre a primeira vez. Até começar a falar. Depois que começo, aí me sinto calmo e tranquilo. Guarde uma coisa, Prado: para fazer tudo bem-feito, faça tudo como se fosse pela primeira vez.
A lição está guardada, essa e as outras. Obrigado, doutor.

Antonio Carlos Prado é editor executivo da revista ISTOÉ