O Movimento Renovação Carismática da Igreja Católica, de origem americana e introduzido no Brasil no final da década de 60, foi responsável por um notável crescimento no número de católicos praticantes no País. Ao incentivar cânticos festivos durante as celebrações, conseguiu reconquistar ovelhas desgarradas e tem capturado novos fiéis para o rebanho, inclusive legiões de adolescentes, e os estimulado à obediência às doutrinas e à reza cotidiana do terço. Outro fenômeno provocado pela Renovação só agora começa a ser estudado: o incentivo à devoção a Nossa Senhora. A pesquisa Tendências atuais do catolicismo no Brasil, realizada em 1999 pelo Centro de Estatísticas Religiosas e Investigação Social (Ceris), criado pela Confederação Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) comprova a força da santa. Os resultados do levantamento estatístico, feito com 5.218 entrevistados nas ruas de seis capitais, serão divulgados em setembro e confirmaram o Brasil como o maior país católico do mundo: 67% dos entrevistados. Mais notável é a crença em Maria. Do universo pesquisado, 52% dos católicos afirmaram crer em “Jesus, Maria e nos ensinamentos da Igreja Católica”, enquanto 31% excluíram Maria e escolheram a opção “Jesus e seus ensinamentos”. “Nossa Senhora é uma referência fundamental para os católicos”, diz Andréa Damaceno, coordenadora do levantamento.

Não se pode medir a fé de um povo apenas com números. Além deles, há outros indícios do revigoramento do culto mariano (a Maria) no Brasil. Não é à toa que se proliferam os adesivos com imagens da Virgem nos carros. Locais de romaria como a cidade de Aparecida, no interior de São Paulo, atraem um número cada vez maior de fiéis. O Santuário Nacional de Nossa Senhora da Conceição Aparecida – a padroeira do Brasil – recebeu cerca de sete milhões de fiéis no último ano. “Pelo menos um milhão a mais do que em 1990”, diz padre Frasson, do Santuário. Lá, está exposta a imagem retirada do rio Paraíba do Sul por três pescadores em 1717 e que teria milagrosamente atraído milhares de peixes.

Horário nobre – Procissões tradicionais espalhadas pelo Brasil flagram, igualmente, o renascimento dessa devoção. Quase quatro mil fiéis provocaram um engarrafamento em Ipanema, zona sul do Rio, no dia 8, durante a procissão de Nossa Senhora da Paz. A presença intensa de manifestações religiosas no horário nobre da Rede Globo, portanto, não é motivo para espanto. Se Deus se manifesta na forma de raios e trovões em Um anjo caiu do céu para o fotógrafo João (Tarcísio Meira), o pescador Guma (Marcos Palmeira) foi ressuscitado por Iemanjá – correspondente à Virgem no candomblé – em Porto dos milagres. Mas a religiosidade televisiva extravasa mesmo em A padroeira, novela das seis baseada na história da aparição de Nossa Senhora Aparecida. O autor, Walcyr Carrasco, um devoto da Virgem Maria, pretende tratar todos os milagres feitos por ela “com o máximo de carinho e cuidado”. Ele afirma que não é apenas pela busca da audiência dos católicos. “Tive uma vivência, mas prefiro não contar”, diz. E adianta: haverá uma aparição da Virgem no decorrer da novela.
Tanta dramaturgia seguindo a cartilha gerou protestos em segmentos da sisuda Igreja Católica. Um comunicado foi divulgado pelo padre José Ulysses da Silva, reitor do Santuário Nacional de Aparecida, dando um puxão de orelhas na Rede Globo e pedindo “respeito aos sentimentos do povo para com a imagem de Nossa Senhora”. Mas os missionários não planejam virar telespectadores de novelas para saber se o pedido foi atendido. “O povo assiste e nós ficamos sabendo”, resumiu o padre José Roberto Pereira dos Santos, de Aparecida. Mas o senso de humor permanece. “Em vez de virem gravar em Aparecida, eles criaram uma cidade cenográfica e fizeram até um rio cheio de tilápias. Não sou especialista em peixes, mas parece que as tilápias só existem no Brasil há 50 anos”, comenta o padre Frasson.

A Rede Globo não é o único canal a investir nesse filão. Na TV Cultura, Nossa Senhora costuma ser campeã de audiência com a Missa de Aparecida, superando programas consagrados da emissora como o Castelo Rá-Tim-Bum. Sucesso ainda mais glorioso espera fazer a Rede Globo a partir do domingo 29, quando começará a transmitir a Santa missa com padre Marcelo Rossi às seis da manhã. Celebrada no Santuário do Terço Bizantino, em São Paulo – que tem capacidade para receber dez mil fiéis –, a missa será transmitida ao vivo para 14 países, incluindo Estados Unidos, Austrália e Japão. Presidida por Dom Fernando Antônio Figueiredo, bispo de Santo Amaro e presidente da CNBB em São Paulo, contará com padre Marcelo para a concelebração e a animação da cerimônia. Apenas o Rio de Janeiro continuará exibindo A santa missa em seu lar, da arquidiocese carioca, o mais antigo programa da Globo, no ar desde 1968. “Sinceramente, não espero atrair muitos fiéis ao vivo nesse horário. Mas quero entrar na casa das pessoas, usar os meios de comunicação para evangelizar”, explica o jovem padre Marcelo, um dos líderes da Renovação Carismática, que deve lançar seu quarto CD em outubro.

Mesmo para quem já era devoto da santa, os alegres rituais se tornaram mais um atrativo para vivenciar a religião. A socialite Carmen Mayrink Veiga, devota de Santa Terezinha, de Nossa Senhora de Fátima e de outros seis santos, não teve, num primeiro momento, uma boa imagem dos carismáticos. Mas depois de conversar com padre Marcelo, mudou de idéia. “Ele é uma pessoa maravilhosa”, diz. Carmen reza o terço todos os dias e afirma ter alcançado muitas graças. “Minha fé não é interesseira. Ando pendurada numa bengala, mas nunca pedi aos meus santos para não sentir dor”, orgulha-se ela, que é vítima de artrose. No dia de cada um de seus santos, Carmen vai às respectivas igrejas com flores ou velas. Nos outros dias, faz homenagens no oratório de seu quarto ou diante das várias imagens espalhadas pela casa.

Rezar sem dúvida é uma das formas de entrar em sintonia com a santa. Mas cantar também é uma maneira de homenageá-la. Entre os devotos, o cantor Roberto Carlos é o número 1. Filho de pai espírita e mãe católica, compôs sucessos como Jesus Cristo, A montanha e Quando eu quero falar com Deus. Tem admiração especial por Nossa Senhora de Fátima e Nossa Senhora das Graças. “Fiquei uns dez anos pensando em fazer uma canção para Maria. Tive muitas conversas com o Erasmo (Carlos, parceiro em composições) e um dia, de repente, me veio o refrão: Nossa Senhora, me dê a mão, cuida do meu coração”, declarou ao jornal de seu principal fã clube, Um milhão de amigos. O Rei é muito ligado aos padres que trabalham em cultos da Renovação Carismática.

O monge beneditino dom Cipriano Chagas, um dos pioneiros do movimento no Brasil, escreveu no livro Maria e nós que, “na experiência pentecostal católica, um dos elementos que foram reavivados em vez de abandonados é o mariano. Maria é vista como uma pessoa viva e próxima”. Aí está uma das razões da predileção do povo: a proximidade. Maria era humana e veio de uma família pobre. “Constantemente escuto relatos de fiéis dizendo que aprenderam a amar a Igreja com Maria. E falam como se Ela fosse uma tia, irmã, alguém da família”, conta dom Cipriano. O modelo Diego Lucas tem o hábito de se referir à Virgem com intimidade. “Converso com Maria e me sinto protegido por ela”, diz. Bonito, porte atlético, nascido e criado na zona sul carioca, é devoto de Nossa Senhora. Seus dois melhores amigos também. Entre uma praia e outra, eles trocam entre si os escapulários (imagens em pequenas tiras de pano) que carregam no pescoço. Diego não tirou o escapulário nem durante sua apresentação no desfile da grife Água de Coco, na 8ª Semana Barrashopping de Estilo.

Careta, não – Pode parecer estranho um jovem que frequenta o mundo fashion ser devoto de Nossa Senhora. Mas Diego não está sozinho. Sem medo de ser tachada de careta, a modelo e estudante de jornalismo Chiara Magalhães, 18 anos, ex-namorada do apresentador Luciano Huck, declara que reza o terço todo santo dia, vai à missa aos domingos e procura seguir os ensinamentos da Igreja e de Nossa Senhora das Graças, entre os quais manter-se virgem até o casamento. “A religião não tem que mudar porque o mundo mudou. Meu pensamento segue de acordo com a Igreja Católica. Contra o aborto, claro. Casar virgem também, lógico”, afirma.

Assim como esses ensinamentos da Igreja são universais, o culto a Maria também extrapola fronteiras. A secretária adjunta do Instituto de Estudos da Religião (Iser), Regina Novaes, explica que a adoração à santa é de vital importância para o catolicismo. “Ela é universal e, ao mesmo tempo, local, devido aos milagres e aparições”, diz. A freira Lina Boff, especialista em mariologia (estudo de Maria), estima a existência de mais de 300 denominações para Nossa Senhora utilizadas no Brasil, cada qual discriminando o lugar onde ela foi vista ou as circunstâncias da aparição. No mundo, calculam-se aproximadamente dois mil títulos.

Redentora – Se os nomes são diversos, o mesmo não acontece em relação ao papel da santa. Em todos os estudos religiosos, Maria representa a figura da mulher humilde escolhida para trazer ao mundo o filho de Deus. Além disso, a Igreja tem como verdades a virgindade da Santa e sua ascensão ao céu. Um terceiro dogma tem sido pleiteado no Vaticano, mas nunca foi aprovado: que a Virgem seria co-redentora, mediadora de todas as graças e advogada do povo de Deus. Devotos marianos lutam para que o status de Maria seja elevado dentro do clero. Ela passaria a figurar ao lado de Jesus. “Não pode haver uma relação de igualdade entre os dois. Aprovar o dogma da co-redenção seria o mesmo que dizer que o Brasil tem dois presidentes. É necessária uma ressalva de que ela é subalterna ao filho”, explica o frei Carlos Josafá, de São Paulo.

A Virgem foi retratada como co-redentora no livro O auto da Compadecida, de Ariano Suassuna, adaptado para o cinema e dirigido por Guel Arraes. Na pele de Nossa Senhora, Fernanda Montenegro trava uma briga com o diabo e consegue convencer Jesus a salvar várias almas do fogo do inferno. Exemplo da mediação infalível da mãe protetora, imagem que se repete no filme Copacabana, de Carla Camurati, que acaba de ser lançado. A Virgem, representada por uma sombra, trata Alberto (Marco Nanini), um senhor de 90 anos, como um garotinho quando conversa com ele em aparições. Oficialmente, não existem registros de aparições em forma de gente no Brasil. Apenas são relatados casos de fiéis que ouvem vozes ou vêem imagens que choram e conversam com os fiéis. Um dos casos recentes mais notórios é o do empresário mineiro Raymundo Lopes, que, em 1995, abandonou uma vida de luxo e conforto em Belo Horizonte para seguir uma orientação de Nossa Senhora. Ele teria ouvido a santa clamar pela evangelização do povo e da própria Igreja, que estaria se corrompendo pelo materialismo. A dica, venha de onde vier, é oportuna. Ninguém desconhece o domínio do consumo na sociedade. Por isso, é curioso observar casos de pessoas que divulgam os ensinamentos de Maria, como a simplicidade e o amor ao próximo.

Parceria – Mas ninguém precisa abandonar carreira e posses para abraçar a fé em Nossa Senhora. A empresária Riccy Trussardi Souza Aranha, tia da modelo Chiara e dona da sofisticada butique Mixed, em São Paulo, garante que a Virgem é uma das grandes responsáveis pelo sucesso da sua loja. Há sete anos, foi convidada por dom Agnelo Rossi para organizar a construção de um santuário a Nossa Senhora de Guadalupe, padroeira das Américas, em Campinas. “Como estava sempre atarefada, resisti. Dom Agnelo me perguntou se eu ajudaria se ele me garantisse que Nossa Senhora de Guadalupe cuidaria da minha loja”, conta Riccy. “O santuário é um sucesso e a loja também”, diz. Há dez anos, Riccy recebe 25 fiéis em casa. “É lei. Toda quinta-feira vou às reuniões do grupo de oração”, diz.

Salette Salem é uma das integrantes do grupo de Riccy. “O astral é ótimo. Rezamos o terço, oramos por quem precisa e cantamos”, conta. Hoje, Salette é uma das artesãs mais conhecidas do País na confecção de velas sacras, atividade que começou a exercer após um sonho, há dois anos. “Nunca havia trabalhado com velas e aparecia fazendo dezenas, todas com a imagem da santa. Foi um sinal divino”, conta. Salette não sabe dizer quantas velas faz por dia. “É um trabalho lento. Para cada ‘nascimento’ de vela, faço uma oração”, conta. Imagens sagradas, como as manufaturadas por Salette, têm proliferado como objetos de decoração. Até há pouco tempo, era mais comum a exibição de símbolos esotéricos do que católicos, considerados bregas. Hoje, decoradores atendem a constantes pedidos para a construção de altares e não é raro dedicarem lugar de destaque para imagens de Nossa Senhora. O arquiteto carioca Chicô Gouveia aprova os que assumem a identidade religiosa na decoração, como ele próprio. “Tenho muitas imagens em casa porque sou católico, religioso, e também porque gosto de arte sacra brasileira”, diz.

Colaborou Marina Caruso

Foto da Capa – Produção: Lívia Mund; Maquiagem: J.R.O. Santos; Modelos: Christina Avbry (Atriz), Gilberto Santana (NT), Gustavo Henriques Santos (Models Bank), Isabella Viana Costa (Galeria Elenco), Juliana Calhau (Models Bank), Lilian Kawatoko (Galeria Elenco), Maria Augusta S. Antonio (NT/Atriz), Orides Vicente da Silva (NT/Ator), Ruy Lopes Neto (Single) e Sidney Dalla Torre (NT/Ator); Agradecimentos: Paraiso Fantasias, Majú, Minelli, Ana Cezário, My Belly, Quatsi Fourteen, Wrangler, Cinerama, Água de Coco, Marisol, Diadora, Tiger T Tigre, Azaleia, Hering e Romarim

As mil faces da Santa
Determinar qual dentre as imagens da Virgem Maria teria realmente sido a da mãe do menino Jesus é quase impossível. Conforme explica a jornalista Marie France Boyer no livro Culto e imagem da Virgem (ed. Cosac e Naify, R$ 49), não existem descrições sobre a aparência da santa nos evangelhos. No início do cristianismo, era vetada a adoração a imagens de santos. Os primeiros afrescos a dar corpo à Virgem nasceram somente no final do século II, quando já não havia mais nenhum membro vivo na sagrada família. O rosto e a feição de Maria, provavelmente, eram os mesmos de qualquer outra jovem mulher de um carpinteiro do Oriente Médio. Suas diversas imagens estão, na verdade, ligadas à criatividade de seus devotos. Travestida de rainha, mãe dolorosa, jovem alegre, negra, pálida ou bronzeada, a Virgem Maria acabou por virar o reflexo da multiplicidade de seus fiéis.

 

O porquê de tantos nomes
Maria nasceu em Nazaré, filha de Ana e Joaquim. Após mais de 20 anos de casamento sem filhos, Ana e Joaquim teriam concebido Maria em idade avançada, por intervenção da graça divina. Escolhida por Deus desde o nascimento, Maria foi entregue ao templo aos três anos e, aos 12, encaminhada aos cuidados de José, um carpinteiro viúvo. Teria concebido Jesus sem a intervenção de José, grávida do Espírito Santo. Ao longo dos anos, recebeu centenas de denominações, conforme o local e as circunstâncias de suas aparições. Abaixo, alguns exemplos.
 
Nossa Senhora de Fátima
A cidade portuguesa de Fátima tornou-se um dos mais visitados destinos de peregrinações desde 1917, quando três pequenos camponeses relataram ter visto a Virgem e ouvido Dela três segredos. O último foi revelado apenas no ano passado e, segundo o Vaticano, dizia respeito ao atentado sofrido por João Paulo II na década de 80.
 
Nossa Senhora das Dores
Ao pé da cruz, Maria sofreu com o filho. O tema da virgem sofredora é anunciado na Bíblia: “Uma espada te traspassará o coração”, prediz Simeão à Virgem. Nossa Senhora das Dores é representada com uma espada cravada em seu corpo.
 
Nossa Senhora Desatadora dos Nós
Na moda ultimamente, essa denominação foi consagrada por causa de um quadro, pintado em 1700 e exposto em uma igreja de Ausburg, Alemanha. Nele, Maria é representada com uma faixa cheia de nós e se ocupa de soltá-los. Eles representam os problemas do dia-a-dia.
 
Nossa Senhora de Lourdes
A menina Bernadette recolhia gravetos no campo quando foi surpreendida por uma luz que saía de uma gruta. Era a Virgem Maria. Isso aconteceu na cidade francesa de Lourdes, em 1858. A gruta, transformada em santuário pelo papa Pio X em 1907, atrai cerca de cinco milhões de devotos
por ano.
 
Nossa Senhora de Guadalupe
O índio Juan Diego teve uma visão de Maria em 1531, no México. O bispo não acreditou. A Virgem deu uma rosa para o menino levar ao religioso. Quando o índio desenrolou o poncho para tirar a flor, a figura da Virgem estava impressa no tecido
 
Nossa Senhora Aparecida
É a padroeira do Brasil. Conta-se que três pescadores, frustrados com a escassez de peixes no rio Paraíba, lançaram a rede e fisgaram uma imagem da Virgem em 1717. A canoa acabou ficando tão cheia de peixes que os pescadores tiveram de adiantar o retorno para casa.
 
Nossa Senhora da Esperança
Foi a primeira imagem de Nossa Senhora a tocar o solo brasileiro, trazida pela frota de Cabral. Maria leva o Menino Jesus no braço direito e uma pomba no braço esquerdo, que representa a esperança. Após decorar o altar na missa do descobrimento, voltou para Portugal.