No próximo dia 10 de dezembro, a presidente Dilma Rousseff receberá o relatório final da Comissão Nacional da Verdade (CNV). Há dois anos, o colegiado investiga, mapeia e tenta esclarecer os casos de torturas, mortes e ocultação de cadáveres praticados ou comandados por agentes do Estado entre o fim do Estado Novo, setembro de 1946, e o início da transição democrática, outubro de 1988. O documento que encerra os trabalhos da Comissão será contundente. Pedirá ao governo federal que responsabilize criminalmente cerca de 100 militares ainda vivos. Os presidentes da época serão apontados como autores indiretos dos crimes perpetrados durante a ditadura. Será a primeira vez que os militares serão considerados responsáveis institucionalmente pelas violações dos direitos humanos cometidas durante o regime de exceção. “A tortura fazia parte da política de Estado, dentro da ideologia da segurança nacional. Havia uma longa cadeia de comando”, afirma José Carlos Dias, ex-ministro da Justiça e membro da CNV. “O que nós vamos fazer é uma declaração pública de responsabilidade institucional das pessoas que governaram o País”, acrescenta a advogada Rosa Maria Cardoso, uma das representantes da comissão. De acordo com Pedro Dallari, professor de direito constitucional da USP e coordenador da Comissão, o relatório “impactante” detalhará casos de estupros praticados por militantes e até o uso de animais nas práticas das torturas. “Um quadro de horrores”, antecipa o professor.

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ESFORÇO COMPENSADO
Apesar da resistência de integrantes das Forças Armadas em colaborar
com as investigações, a Comissão da Verdade, coordenada por
Pedro Dallari (à esq.), conseguiu ouvir mais de mil
depoimentos, sendo 132 de agentes públicos

O texto que será entregue à presidente destacará como culpados pela morte, tortura e pelo desaparecimento de centenas de pessoas os marechais Castelo Branco e Costa e Silva, os generais Garrastazu Médici, Ernesto Geisel e João Figueiredo. Serão incluídos ainda os três integrantes da Junta Militar – que governaram o País em parte de 1969, durante a doença de Costa e Silva: o general Aurélio de Lyra Tavares, o almirante Augusto Rademaker Greenwald e o brigadeiro Márcio de Souza Mello. Para a Comissão, todos eles tiveram conhecimento das atrocidades cometidas pelo aparato da repressão.

Durante os trabalhos, os responsáveis pelas investigações se depararam com a resistência de integrantes das Forças Armadas em colaborar nas investigações. Dallari lembra um episódio ocorrido na sexta-feira 14, quando o Ministério Público descobriu que um hospital do Exército, no Rio, ocultou documentos da época da ditadura. “Ou essa ocultação de documentos obedeceu a ordens superiores, o que eu realmente não creio, ou houve quebra de hierarquia e desobediência ao que seria uma orientação do comandante do Exército, Enzo Peri”, diz Dallari. No entanto, mesmo diante dos obstáculos, a Comissão conseguiu ouvir mais de mil depoimentos, sendo 132 de agentes públicos – entre os quais delegados, policiais civis e militares que atuaram na repressão, em mais de 80 audiências públicas –, e contabilizar 421 mortos e desaparecidos políticos. Embora o relatório, com centenas de páginas distribuídas por três volumes, exponha nomes de agentes públicos responsáveis por graves violações de direitos humanos, o coordenador da Comissão avalia que a identificação dos autores desses crimes não significará que esses torturadores e assassinos sejam responsabilizados judicialmente pelas atrocidades praticadas, como ocorreu na Argentina, por exemplo. “Isso dependerá do devido processo legal”, afirma Dallari. “Vamos indicar a necessidade da responsabilização. Como isso vai ser feito, se vai ser feito afastando-se a aplicação da Lei de Anistia, reinterpretando a lei, modificando a lei, isso é algo que caberá ao Ministério Público, ao Poder Judiciário e ao Legislativo”, declarou. “Só o Judiciário pode definir responsabilidades específicas, analisando caso a caso”, explica Dias. A expectativa, porém, é que os casos não evoluam no STF. Em 2010, por sete votos a dois, o tribunal se declarou contra a revisão da Lei da Anistia em vigor no País. “Só o homem perdoa, só uma sociedade superior qualificada pela consciência dos mais elevados sentimentos de humanidade é capaz de perdoar. Porque só uma sociedade que, por ter grandeza, é maior do que os seus inimigos é capaz de sobreviver”, afirmou, na ocasião, o ministro Cezar Peluso, em seu voto final.

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Na Argentina, a história e os desfechos foram outros. Diferentemente do Brasil, os argentinos conheceram dois períodos de regime político militar, na segunda metade do século XX. O primeiro deles entre 1966 e 1973, instalado com um golpe de Estado, que derrubou o presidente eleito. Em 1976, houve novo golpe de Estado com a retomada do poder pelos militares, com a instituição de um verdadeiro regime de terrorismo de Estado, sendo afastada toda interferência do Poder Judiciário nas ações dos militares. Estima-se que 30 mil foram mortos. Terminado o segundo regime militar, os dois primeiros governos civis resolveram decretar uma anistia de todos os crimes cometidos pelos militares, entre 1976 e 1983. Só que, em 2005, a Suprema Corte de Justiça da Argentina considerou essa anistia inconstitucional. Iniciaram-se então os processos criminais contra os militares. Até o ano passado, mais de 200 haviam sido condenados a penas de prisão, dos quais os dois presidentes durante o segundo regime militar.

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Foto: Antonio Cruz/Agência Brasil