Apesar da popularidade em alta e do sorriso que não desprega das bochechas, o governador do Rio, Anthony Garotinho (PDT), sofre em silêncio com uma pedra no sapato. O incômodo é causado por um personagem misterioso, desconhecido do público, mas que já foi íntimo do governador e agora é considerado inimigo mortal. Seu nome é Guilherme Freire, 40 anos, empresário que fez dinheiro à frente da empreiteira Tucun, contratada pela Prefeitura de Campos quando Garotinho se tornou o chefe do Executivo municipal, em 1989. Freire foi apontado por assessores do governador como o autor de gravações ilegais que atingiram Garotinho e seus assessores nos últimos anos. Numa fita, divulgada durante a campanha eleitoral de 1998, Garotinho aparece intermediando a compra de uma emissora de rádio. Em outra, Carlos Augusto Siqueira, presidente da Empresa de Obras Públicas (Emop), acerta com um interlocutor a maneira de superfaturar um show comemorativo do aniversário de Campos. Chamado pelo Ministério Público estadual, há dois meses, o empresário negou a autoria dos grampos, mas mostrou que guarda munição para causar estragos à imagem do governador. Freire afirmou ter em seu poder gravações em que Garotinho aparece “corrompendo alguém” para abrir “contas fantasmas” e “esquentar dinheiro”.

As gravações teriam sido feitas entre 1995 e 1996. No depoimento, prestado à promotora Margaret Ramos, em Campos, Freire afirma que as fitas contêm conversas gravadas entre o então prefeito Garotinho, seu contador (não identificado), o advogado Antonio Maurício Costa e Jonas Lopes de Carvalho – ex-chefe do Gabinete Civil estadual, atual conselheiro do Tribunal de Contas do Estado (TCE), e na época responsável pela Caixa de Previdência dos funcionários campistas. Segundo a declaração de Freire ao MP, além de tratar de contas fantasmas e de uma operação para esquentar dinheiro, os quatro tramavam corromper alguém para “agilizar documentação junto a órgãos federais”. As fitas revelariam também uma operação orquestrada para encurralar o inimigo de Garotinho, detonando uma fiscalização rigorosa nos seus negócios. Jonas e Costa teriam dito que dispõem de meios “para colocar a Receita Federal para atuar” na empresa de Freire. “Por coincidência, o nome da pessoa citada na gravação é o mesmo que, de fato, fiscalizou a empresa do declarante”, relata o documento. Segundo Freire, a certa altura Jonas se gaba do ataque da Receita à empresa de Freire: “Cavalheiro, eu sei fazer essas maldades.” A amigos contou que Jonas afirmara que outros processos ainda estariam por vir.

Procurado por ISTOÉ para comentar as acusações de Freire, o governador tentou minimizá-las. “Esse rapaz está desmoralizado. As fitas foram desqualificadas pela Justiça por terem sido adulteradas e obtidas de forma ilícita”, rebateu Garotinho. De fato, Freire tentou encaminhar as gravações à Justiça Federal, que não as recebeu por terem sido originadas de grampo telefônico. Garotinho explica que trabalhou com a Tucun em seu primeiro mandato. “Na segunda vez que assumi, descobri irregularidades. Um primo dele, Sérgio Mendes, tinha sido prefeito e Freire monopolizou as obras na cidade. Acabei com a festa e denunciei os dois ao TCE e ao MP”, afirma. O governador diz que “quem não deve não teme”. Outro citado pelo empresário, o advogado Costa, classifica as acusações como represália por ter atuado numa ação em que Freire foi condenado a pagar indenização pelo atropelamento causado por um caminhão de sua empresa, em que morreram duas pessoas. “Ele ameaçou a mim e aos colegas do escritório”, conta Costa. “Não tenho nenhuma influência na Receita.” O conselheiro Jonas foi procurado por ISTOÉ, mas não deu resposta.

Renato Velasco
Garotinho e Jonas Lopes, hoje no TCE: jogando juntos desde a eleição para a Prefeitura de Campos

Apesar da origem obscura de suas acusações e da má fama de Freire, ele merece atenção pela proximidade que sempre teve com Garotinho. Os dois estudaram juntos no Liceu de Humanidades de Campos. Em 1986, Freire abriu uma pequena empresa agrícola. Três anos mais tarde, quando seu amigo de infância se tornou prefeito, passou a atuar no ramo de construções e acabou contratado pela prefeitura. A partir de então, a empresa tornou-se uma das maiores prestadoras de serviços do governo municipal, chegando a ter 300 funcionários e faturamento mensal de até US$ 500 mil. O empresário sempre gozou de intimidade com Garotinho. Em audiências com o prefeito, não esperava em filas. Costumava ceder sua casa para festas de aniversário de Garotinho e sua mulher. Aos amigos, Freire contou que intermediou vários negócios para o então prefeito e sempre foi um dos maiores financiadores das campanhas políticas do atual governador e de seus aliados. Garotinho carinhosamente o chamava de “Odebrecht” e dele recebia dedicatórias.

Em 1995, no entanto, um desentendimento político acabou com a amizade. Freire passou a alardear que corria risco de vida. Acusou Garotinho e seu assessor Carlos Augusto Siqueira de terem interesse na sua morte – o processo sobre a denúncia, aberto em 1997, acabou arquivado por falta de provas. Coincidentemente ou não, desde que as relações entre Garotinho e Freire azedaram, a Tucun passou a sofrer fiscalização mais rigorosa e hoje está praticamente desativada. A investigação da Receita Federal, citada nas gravações, diz respeito a irregularidades acontecidas em 1992, quando a empresa ainda prestava serviços para a Prefeitura de Campos. Esse, talvez, tenha sido o principal motivo para Freire transformar Garotinho em alvo preferencial. O governador, por sua vez, anuncia que vai processá-lo pelas declarações feitas ao MP. Está no seu direito. Na verdade, não se entende por que não fez isso antes.