Carlos Magno
Autran Dourado, amigo e assessor de JK: despachos no banheiro do Catete

Que o ex-presidente Juscelino Kubitscheck era um pé de valsa, gostava de cantar, usava perfume francês, mantinha no Palácio do Catete um barbeiro e fazia as unhas toda a semana, não é novidade. Seu tórrido romance com a socialite Lúcia Pedroso também já é público. Mas ainda há muito o que contar sobre o Presidente Bossa Nova. Pouca gente conhece, por exemplo, a chantagem sofrida por JK de um desconhecido que encontrou seu diário íntimo. Em dois cadernos manuscritos – todos os nomes próprios só com as iniciais, a maioria de mulheres – eram descritos em minúcias encontros secretos. Em troca, o homem queria que o presidente telefonasse para uma empresa não-estatal e solicitasse sua nomeação como diretor-tesoureiro. A história inédita está no livro Gaiola aberta (editora Rocco), que o escritor Autran Dourado lança em 2 de outubro. São memórias do próprio autor, que foi secretário de Imprensa de JK de 1954 a 1958. “Procuro não apresentar o lado mítico, mas sim o humano, até demasiadamente humano de Juscelino”, esclarece.

O diário amoroso foi levado a JK, que imediatamente o reconheceu. O desfecho não poderia ser outro. Juscelino solicitou o telefone da tal firma e demorou muito ao aparelho, todo mesuras. Depois dirigiu-se a Dourado e a Geraldo Carneiro, oficial de gabinete, e se entregou: “O que era para fazer já fiz. Se é para fazer mais alguma coisa, me digam. Isso iria me causar o maior problema.” O discreto escritor, não por acaso mineiro, 74 anos, conta o fato, mas não dá nomes a todos os bois.

Sua intenção foi fazer um livro do bem, sem fofocas. Entre as inconfidências que não quis cometer no livro está o sistema especial mantido por JK para encobrir suas frequentes puladas de cerca. Quando sua mulher, dona Sarah, ou qualquer pessoa importante telefonava para o seu gabinete, havia sempre alguém a postos – servidores íntimos como o subchefe de gabinete Edgar Magalhães, já falecido – para despistar.

O livro descreve o cotidiano de Juscelino, cuja história poderia ser muito mais conhecida se uma caixa de documentos pessoais, que incluía o tal diário, não tivesse sido incendiada por Dourado. A drástica medida foi uma precaução. O escritor temia que os textos, como o que relatava o rompimento do presidente com o FMI e o consequente apoio da esquerda a essa medida, pudessem cair nas mãos dos militares. Depois da decretação do AI-5, vários auxiliares de JK foram presos e um policial que devia favores ao escritor o alertou de que ele próprio seria a bola da vez. “Não havia motivos, mas eles saíram prendendo todo mundo sem maiores explicações”, lembra Dourado. O próprio presidente não escapou das grades, antes mesmo de começar a articular o movimento que ficou conhecido como Frente Ampla, pela volta do Estado de direito.

Prensa Três
Juscelino com a atriz americana Kim Novak: chantagem depois da perda do diário amoroso

O autor diz ter optado por apresentar os fatos de acordo com a sua memória, sem se preocupar com datas ou obedecer a ordens cronológicas. Uma coisa é certa: não faltava intimidade entre Autran Dourado e JK. A tal ponto que não eram raros os despachos no banheiro. “Me incomodava sobretudo ele ficar se ensaboando na banheira”, diz Dourado. O ex-secretário de Imprensa percebia quando a encrenca era grave, como no caso do romance com Lúcia Pedroso: “Desta vez a coisa é séria. Depois que dona Sarah descobriu o que estava acontecendo, tiveram uma briga terrível. Ele chegou a me dizer que às vezes pensava que seu casamento fora uma loucura, se casara com uma onça”, relata Dourado no livro.

A primeira-dama era uma esposa zelosa. Por volta de 1958, deu um telefonema que tirou Dourado da cama às 7h30. O motivo era grave. Quando o escritor chegou ao Palácio do Catete, soube que JK tinha sofrido um infarto, até hoje mantido sob sigilo. Dona Sarah e auxiliares íntimos do presidente pretendiam abafar a doença e queriam saber a sua opinião. O secretário de Imprensa foi contra, mas a farsa foi mantida. Isso o obrigou a verdadeiras ginásticas para despistar a desconfiada imprensa. Chegou a dar uma de dublê do presidente ao pegar o helicóptero e acenar para os repórteres como fazia JK. Telefonou para um amigo do jornal O Estado de Minas, que suspeitava da verdade. Dourado escreveu uma declaração dizendo ser de JK e a leu para o jornalista. A notícia de que tudo estava bem foi logo repassada ao Rio. O escritor chegou a usar documentos em branco com a assinatura de JK para eventuais emergências. O doente passou 20 dias no estaleiro sem que ninguém soubesse que o País estava sem comando.

Assine nossa newsletter:

Inscreva-se nas nossas newsletters e receba as principais notícias do dia em seu e-mail

Quando ouviu dizer que Dourado escrevia um livro sobre JK, o escritor e imortal Carlos Heitor Cony lhe recomendou cautela. Soube que dona Sarah e a filha de JK, Márcia, falecida este ano, já tinham processado outro biógrafo. Mais uma razão para o já cauteloso mineiro puxar o freio. Quem ler Gaiola aberta não vai encontrar sensacionalismo. Os admiradores do seu estilo macio poderão se deliciar em breve com o relançamento de toda a sua obra pela editora Rocco. Inclusive A barca dos homens, considerado pela Associação Brasileira de Escritores como o melhor livro de 1961; O risco do bordado, o melhor livro de 1970 para o Pen Club do Brasil; e Imaginações pecaminosas, Prêmio Jabuti em 1982.


Siga a IstoÉ no Google News e receba alertas sobre as principais notícias