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Ao lado da filha Keiko, o presidente Alberto Fujimori escala os muros do palácio presidencial para acenar a partidários

Eu me reuni por duas vezes com oficiais do Exército peruano e uma vez com o Serviço de Inteligência Nacional (SIN). Querem saber por que eu tive essas reuniões? Quando chegar o momento indicado, quando meu advogado mandar, eu contarei tudo.” A declaração foi feita ao jornal peruano La Republica na quarta-feira 19 por um dos maiores contrabandistas de armas do mundo, o turco Sarkis Soghanalian, conhecido como “mercador da morte”, que está preso em Los Angeles. A denúncia de Soghanalian pôs mais lenha na fogueira da crise política peruana desencadeada uma semana antes, quando a divulgação de um vídeo envolvendo o poderoso assessor presidencial Vladimiro Montesinos num caso de suborno levou o presidente Alberto Fujimori a anunciar a convocação de novas eleições, às quais ele não concorreria. O caso a que se refere Soghanalian é a descoberta, anunciada em agosto passado pelo presidente Fujimori e por Montesinos, de um contrabando de dez mil fuzis russos Kalashnikov, via Peru, para o grupo guerrilheiro Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc). “Se as armas não chegaram ao Peru e estão em poder das Farc, essa é uma responsabilidade do governo peruano. E se o presidente Fujimori não consegue controlar seus militares e seu serviço de inteligência esse não é um problema meu”, declarou o contrabandista. Soghanalian não quis dizer se esteve ou não com Montesinos, ex-chefe informal do Serviço de Inteligência Nacional (SIN), que até a semana passada era considerado a eminência parda de Fujimori. Os fuzis foram comprados da Jordânia, que garante que os vendeu legalmente ao governo peruano.

Suborno – O estopim da crise foi desencadeado na quinta-feira 14, quando um canal de tevê peruano divulgou um vídeo mostrando Montesinos pagando US$ 15 mil para o deputado de oposição Alberto Kouri, propina para que ele se bandeasse para as fileiras do situacionismo. A revelação provocou um terremoto no governo, que mal acabara de enfrentar denúncias de que realizara uma gigantesca fraude eleitoral para garantir o terceiro mandato a Fujimori, em maio passado. Mestre em maquiavélicas manobras palacianas, El Chino – como o presidente peruano é conhecido – agiu rápido. Num surpreendente discurso pela tevê no sábado 16, ele anunciou a convocação de novas eleições gerais, das quais ele não participaria. Além disso, Fujimori também prometeu extinguir o famigerado SIN e investigar as denúncias contra Montesinos.

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Peruanos voltam a enfrentar a polícia pedindo a renúncia de Fujimori

O anúncio levou milhares de peruanos às ruas de Lima, a capital, para comemorar o que se considerou, precipitadamente, como o fim de um regime democrático na fachada, mas profundamente autoritário na essência. O renomado escritor peruano Mario Vargas Llosa – derrotado por Fujimori na eleição de 1990 – chegou a dizer que “a ditadura terminou e se abriu uma grande esperança de democracia”. Mas apenas dois dias depois, ao anunciar a data das novas eleições – março de 2001 –, o presidente mostrou que não tinha nenhuma intenção de deixar o poder tão cedo. “Não estou dizendo adeus ainda. Este anúncio não significa a minha renúncia”, assegurou. Enquanto isso, o sinistro Montesinos, pivô da crise, desaparecia do cenário político. Rumores de que estava articulando um golpe com os comandantes militares circularam insistentemente na capital peruana. Significativamente, nenhuma medida foi tomada por Fujimori contra seu antigo braço direito. Ele não foi sequer destituído, muito menos detido, como chegou a ser divulgado. Ninguém sabe se houve uma ruptura entre o presidente e seu assessor ou se tudo não passou de uma cortina de fumaça.

Na quarta-feira 20, a rede de tevê peruana N afirmou que Montesinos estava reunido com o Comando Conjunto das Forças Armadas. Não seria de estranhar. O ex-assessor presidencial é o responsável pela montagem da atual cúpula das Forças Armadas peruanas. Ele indicou nada menos do que 22 oficiais-generais; seis de seus colegas da turma de 1966 da Academia Militar de Chorrillos estão no comando das regiões militares do país. Além disso, oito generais-de-divisão e 14 generais-de-brigada devem suas promoções a Montesinos. O general Cubas Portal, comandante da 2ª Região Militar, que controla a poderosa Divisão Blindada, é cunhado do ex-assessor. E até o comandante das Forças Armadas, general José Villeneuva, também foi indicado pelo antigo chefe do SIN. Muitos analistas atribuem a essa interferência de Montesinos nas Forças Armadas o surgimento de divergências entre o Exército e a Marinha. Entre outras coisas, a Armada tem seu próprio serviço secreto e sentia-se prejudicada pela concentração de poderes no SIN. Alguns até responsabilizam oficiais da Marinha pela entrega do vídeo que compromete Montesinos a um congressista de oposição, Fernando Olivera.

Asilo – A cúpula militar fez suspense até a quinta-feira 21, quando finalmente divulgou um comunicado de apoio a Fujimori, o que contribuiu para baixar a temperatura política e os rumores de golpe. A necessidade de demonstrar unidade falou mais alto que possíveis rachas. Segundo o jornal El Comercio, três generais já fugiram do Peru com documentos secretos do SIN. Na sexta-feira 22, o jornal argentino Clarín informava que Fujimori e a cúpula militar tinham chegado a um acordo que permitiria ao ex-assessor presidencial buscar asilo no Panamá ou no Brasil. Nessa articulação, segundo o jornal portenho, tiveram participação importante o embaixador americano em Lima, John Hamilton e o presidente brasileiro Fernando Henrique Cardoso, que conversou com Fujimori por telefone. Consultado por ISTOÉ, o Itamaraty disse desconhecer qualquer gestão no sentido de o Brasil conceder asilo a Montesinos.

Até a inesperada ascensão do engenheiro Alberto Fujimori ao Palácio Pizarro (sede do governo) em 1990, Vladimiro Lenin Montesinos era um advogado que ganhava a vida defendendo chefões do narcotráfico. O ex-assessor sempre agiu na sombra e em meio a rede de intrigas. Em 1976, o então capitão Montesinos foi expulso do Exército peruano por ter falsificado a assinatura de um superior para viajar aos EUA, supostamente para manter contatos secretos com a CIA e o Pentágono. Montesinos teria vendido aos americanos documentos secretos sobre o material bélico de origem soviética comprado pelas Forças Armadas peruanas. Na época, o Peru era governado por um regime militar nacionalista. Com a eleição de Fujimori, Montesinos se tornaria o homem-forte do presidente. O ex-capitão foi o principal elo de ligação entre Fujimori – até então um outsider na política – e a cúpula militar, já devidamente expurgada dos nacionalistas. Essa ligação possibilitou a Fujimori desfechar o “autogolpe” de abril de 1992, quando o presidente, com o apoio do Alto Comando, fechou o Congresso e interveio no Judiciário alegando impossibilidade de combater a hiperinflação e derrotar o terrorismo. A partir daí, Montesinos estruturou o regime fujimorista no tripé SIN-Forças Armadas-Fujimori. Esse esquema se mostraria eficaz na estratégia para aniquilar o grupo terrorista maoísta Sendero Luminoso – responsável por cerca de 25 mil mortes desde 1980.

Volta em 2006? – Tudo parece indicar que, passada a tempestade, Fujimori já articula uma possível volta ao poder depois de entregar a faixa presidencial ao sucessor em 2001. No projeto enviado ao Congresso, está previsto o fim do segundo turno e da possibilidade de reeleição presidencial – criada pelo próprio Fujimori. Naturalmente, para evitar que seu sucessor seja tentado a ficar muito tempo na cadeira presidencial. Nesse caso, Fujimori poderia voltar em 2006, quando teria 68 anos.

“Fujimori não chegará sequer a 2001”, disse a ISTOÉ o analista Carlos Reyna. Ele acha que o presidente perdeu o apoio de vários setores da sociedade, incluindo os empresários e investidores estrangeiros que o apoiaram nas últimas eleições. Mas para chegar-se a uma transição democrática será necessário não só o desmantelamento do SIN, mas de toda a máquina fujimorista. “Nas mãos de Montesinos, as Forças Armadas se tornaram um partido político”, afirma Reyna. “O mais importante é a pressão dos próprios peruanos. Mesmo se Toledo (Alejandro Toledo, derrotado por Fujimori no primeiro turno) for eleito, ele será cobrado para não se tornar um novo Fujimori.” Em seu discurso televisivo, El Chino, ironicamente, arriscou uma previsão. “O povo, estou certo, saberá com prudência escolher seu melhor destino.” 

Golpe sem apoio
O presidente Alberto Fujimori não chegou a se tornar uma liderança entre os militares e por isso é difícil receber o apoio da caserna para um golpe de Estado. A avaliação é de um militar peruano que reside no Rio de Janeiro há dez anos. O oficial, que prefere o anominato, acredita que a ruptura do processo político causaria o isolamento do Peru, que não teria nem o apoio dos países do Mercosul nem dos EUA. Mas reconhece que há “adeptos de uma solução golpista, que teria a simpatia de empresários beneficiados pelo fujimorismo”.
Hélio Contreiras