Ricardo Giraldez
Nany People se inspirou na drag americana …

O fim das Olimpíadas em Sydney está sendo esperado com o mesmo entusiasmo da abertura. Todos querem assistir ao show de drag queens no estádio. As drags estão para a Austrália assim como o Carnaval e o futebol estão para o Brasil (leia quadro à pág. 74). Lá, elas ganharam um espaço, ou como diz a gíria, saíram do armário (leia quadro). Aqui, parece, começa a acontecer o mesmo fenômeno. Antes só eram chamadas para fazer shows em boates, representar telegramas falados ou como atração de festas e eventos. Mas aos poucos drags, travestis e transexuais começam a conquistar espaço também na mídia.

A mineira Nany People, 35 anos, por exemplo, é repórter do Comando da madrugada, pilotado por Goulart de Andrade na tevê paulista Gazeta, de segunda à quinta-feira, às 23h. Além de reportagens, nas quais ela dá um banho como entrevistadora e humorista, Nany tem ainda um quadro, que só é apresentado na reprise do programa aos sábados, às 23h. Nele, ela ensina etiqueta, faz testes engraçados e fala mil abobrinhas (leia quadro à pág. ao lado) para o mundo GLS (gays, lésbicas e simpatizantes). Além da telinha, Nany faz dois programas na rádio Jovem Pan – Pânico (das 12h às 14h, quartas) e Zíper (das 22h às 24h, terças), ao lado do psicanalista Jairo Bauer. Ainda assina uma coluna mensal na revista G Magazine.

Reuters
…RuPaul para fazer seu personagem

Formado pela Unicamp, o ator que interpreta Nany não revela sua identidade nem sob tortura. Antes de descobrir o caminho do sucesso com sua drag queen, há oito anos, ele fez muito Shakespeare no teatro. A sua trajetória lembra um pouco o filme Tootsie – personagem de Dustin Hoffman, no qual ele só consegue a fama quando se veste de mulher. Nany se inspirou na drag queen americana RuPaul, dona de um talk show de grande sucesso na tevê dos Estados Unidos. Nany ama RuPaul da mesma maneira que detesta ser chamada de travesti. “Travesti quer ser mulher, coloca silicone nos seios, por exemplo”, esclarece Nany. “Já a drag é uma caricatura bem-humorada da feminilidade.” A artista acredita que as drags fazem sucesso porque depois do feminismo as mulheres deixaram a vaidade de lado e, quando se enfeitam, são chamadas de peruas. “Nós aproveitamos essa brecha, com exagero e humor”, acredita ela.

Helcio Nagamine
Charlotte faz perguntas picantes para os entrevistados e é assessorada por Garçopink.

No mesmo horário, na Rede TV!, outra drag faz barulho. Charlotte Pink apresenta dois blocos do programa Te vi na TV, de João Kleber, às segundas-feiras, às 23h com reprise aos sábados no mesmo horário. Personagem do humorista, um heterossexual assumido, Charlotte apresenta uma espécie de talk show escrachado. Revela protagonistas de temas picantes como sexo grupal, sadomasoquistas, garotos de programa e outros assuntos, com entrevistados que mostram a cara sem medo. Diretas, as perguntas de Charlotte são capazes de corar até uma Dercy Gonçalves.

Ela é assessorada por uma loira arrasa quarteirão: a Garçopink. Sem rodeios, mostra seu avantajado bumbum e sua cabeleira loira ao servir água para os convidados. Charlotte dá um de seus gritinhos e pergunta para a platéia: “Ela é homem ou mulher?” O auditório responde sim e não ao mesmo tempo. O mistério paira no ar. E o Ibope do programa sobe para 7 pontos – fica em terceiro lugar, perdendo apenas para a Globo e SBT. “Cada vez mais as pessoas estão aceitando os gays e, de alguma maneira, eu contribuo para o fim do preconceito contra eles”, diz João Kleber. Prova disso é que a estonteante Garçopink, também conhecida por Daiane, se chama Fernando Calegari Jr. Ele não se vergonha de mostrar sua certidão de nascimento. Mas assim como a drag queen Nany People, detesta ser chamada de travesti. “Sou uma mulher num corpo de homem. Gosto de ser assim. Não vou fazer operação”, afirma Daiane. Gaúcha de Lageado, descobriu sua verdadeira sexualidade aos 13 anos. Cinco anos depois veio a confirmação ao se apaixonar por um árabe. Passou no vestibular para Veterinária, mas descobriu que era uma artista. Aos 19 anos, apesar de aparecer pouco no programa, diz que seu objetivo são as luzes da ribalta. “Minha família aceita e me trata como uma garota saindo da puberdade”, diz Daiane.

Henrique Barros
Acima, a famosa Salete Campari, que imita Marilyn Monroe.

Outro zaping no controle remoto. Se aparecer um programa de colunismo social eletrônico, do tipo de Amaury Jr, não dá outra. Lá está a badalada Salete Campari, 32 anos. Produzida ou montada, como as drags gostam de falar, feito um clone de Marilyn Monroe, Salete também tem um nome masculino escondido a ferro e fogo em sua carteira de identidade. Como todos os outros personagens, a carismática drag queen sonha em apresentar um programa na tevê ou no rádio. Por enquanto, ela é necessária – outra gíria gay – em qualquer festa chique. Faz espetáculos em boates, telegramas falados, mini-shows em festas particulares, adultas e infantis. Chega a ganhar entre R$ 500 e R$ 1 mil para cada participação. Ela é uma celebridade. Daí, sua exposição na tevê ou revistas. “Sou educada, simpática, feliz e culta”, diz Salete.

Ricardo Gomes/Ag. o Globo
Já a transexual Roberta Close quer esquecer seu passado

Fantasias – Essa exposição é fruto da aceitação dos gays pelo público.O psicanalista Paulo Ceccarelli, especialista em sexualidade, afirma que só há dois sexos: o homem e a mulher, e ponto final. Mas existem outras formas de manifestar a sexualidade. “Não há certo e errado nessa manifestação”, diz o médico. Se essas fantasias podem ser estampadas é porque o preconceito está desaparecendo. “Mostrar a sua sexualidade seja como drag, travesti ou transexual, é saudável”, acredita Ceccarelli.

Apesar de ter sido uma precursora dessa abertura e até ser considerada uma das mulheres belas do País, Roberta Close, substituta de Monique Evans no programa diário, às 0h50 no Shoptime (Net) não quer mais ver seu nome envolvido com transexuais. Deseja apenas apresentar o programa, vender CDs e vídeos eróticos, além de sabatinar alguns convidados. Como uma mulher qualquer. Mesmo com uma propaganda em que brinca com sua dupla identidade no ar, Roberta quer esquecer que um dia foi “ele” e fez uma operação para mudar de sexo. Uma assessora da estrela foi tachativa: “Esse assunto não aparece mais na agenda dela. Além disso, o marido, Roland, não permite tal exposição.” Logo agora que elas saem do armário, Roberta fecha a sua porta. 

As rainhas do deserto
Ricardo Stuckert
Kitty Litter é gerente da loja Drag Bad, a principal da Austrália

Sydney é considerada uma das capitais mundiais em matéria de respeito aos direitos dos gays, ao lado de San Franscisco, nos Estados Unidos. E as mais tradicionais representantes desta cena na cidade-sede dos Jogos Olímpicos de 2000 são as drag queens. Elas ganharam fama internacional depois do sucesso do filme Priscilla, a rainha do deserto (1994), que recria a história real de três homossexuais australianos que viajaram pela Austrália realizando shows nos mais inimagináveis lugarejos. Dias atrás, o Socog, comitê organizador dos Jogos de Sydney, divulgou que um dos shows da cerimônia de encerramento será inspirado em Priscilla e terá a participação de drag queens. Católicos e protestantes não gostaram, mas o ministro olímpico, Michael Knight, saiu em defesa da turma. “Eles vão apenas alegrar as pessoas. Formam uma parte respeitável da rotina da cidade. Isso é uma prova de que Sydney e os australianos respeitam os homossexuais”, declarou Knight.

O estilo das drags australianas é marcado pela alegria. “Nós apenas queremos divertir as pessoas”, diz Betty Windsor, um inglês que chegou em Sydney há 24 anos, no ano do primeiro Mardi Gras, o Carnaval gay da cidade, que acontece durante o mês de fevereiro, e resolveu ficar. O Carnaval homossexual movimenta a economia da cidade. “É um negócio caro, mas que exige além de tudo muita dedicação”, lembra a drag Miss Kitty Litter, gerente da Drad Bag, principal loja de produtos para drag queens em Oxford Street.

São quase trinta dias com shows de música e exposições por toda a cidade, que recebe milhares de turistas de todo o mundo. No último final de semana de fevereiro, acontece a grande apoteose: a parada gay. Neste ano, ela foi acompanhada por 750 mil gays.
Eduardo Marini e Eduardo Hollanda – Sydney