Na última semana, petistas históricos assumiram o papel de grilo falante do governo, aquele personagem da literatura infantil que se notabilizou como a consciência de Pinóquio. Imbuídos de uma sinceridade incomum, resolveram dizer em público o que murmuravam em privado há um bom tempo. A crítica mais eloquente partiu da ex-ministra da Cultura, Marta Suplicy, uma das principais lideranças do PT de São Paulo. Ao entregar sua carta de demissão na terça-feira 11, Marta desejou que a presidente Dilma Rousseff estivesse “iluminada” na escolha de uma nova equipe econômica “independente, experiente e comprovada”, que resgatasse a confiança e a credibilidade do governo. O teor da carta de despedida de Marta manteve a toada de reparos que outros integrantes do partido e do governo já vinham fazendo à condução do País por Dilma. Em comum, entre eles, está a crítica pela esquerda.

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SAIU ATIRANDO
Em carta de despedida do governo, Marta Suplicy disse
que era preciso resgatar a credibilidade e a confiança

Ao tornar pública sua insatisfação, o PT ecoa a opinião dos decepcionados com os primeiros passos do governo que aumentou a taxa de juros, já fala da necessidade de ajuste fiscal e até de nomear um banqueiro como Ministro da Fazenda – políticas e atitudes consideradas ortodoxas do ponto de vista econômico e que eram atribuídas durante a campanha ao adversário no segundo turno, o senador Aécio Neves (PSDB). No dia anterior à saída de cena de Marta, o ministro da Secretaria-Geral da Presidência, Gilberto Carvalho, já havia colocado uma outra pimenta no caldo de críticas ao governo. Em entrevista à BBC Brasil, o ministro disse que Dilma se afastou dos “principais atores na economia e na política”, nos últimos quatro anos, e “avançou pouco” em demandas de movimentos sociais, sobretudo nas reformas agrária e urbana e na demarcação de terras indígenas. Em artigo, o ex-integrante do governo Lula, Frei Betto fez coro: “Os avanços socioeconômicos coincidiram com o retrocesso político. Em 12 anos de governo, o PT despolitizou a nação. Preferiu assegurar governabilidade com alianças partidárias, muitas delas espúrias, em vez de estreitar laços com seu esteio de origem, os movimentos sociais”. Para o cientista político da USP e ex-ministro de Lula, André Singer, a presidente Dilma poderia dar uma sinalização à esquerda ao tornar o programa de transferência de renda Bolsa Família uma política de Estado, como Aécio Neves havia proposto durante a campanha. Segundo Singer, o Congresso não oporia resistência à iniciativa. “Do ângulo da esquerda, a quem cabe a iniciativa, pois ganhou a Presidência e participa do maior bloco no Congresso, seria possível apresentar de imediato proposta que tornasse o Bolsa Família um direito constitucional. Se até o PSDB declarou apoio à medida, é difícil para o PMDB, síndico do bloco de centro, recusar os votos necessários”, avalia Singer.

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SINCERICÍDIO
O ministro Gilberto Carvalho criticou Dilma por se afastar dos
“principais atores na economia  e na política”

Há outras variáveis por trás desses movimentos, além da intenção de pressionar para que o governo manobre à esquerda. Num momento em que os partidos aliados, sobretudo o PMDB, ameaçam causar problemas para o governo no Congresso, caso não sejam contemplados com postos estratégicos na Esplanada dos Ministérios numa próxima reforma ministerial, o PT também busca ampliar seu espaço. O partido controla hoje 17 ministérios, mas, de olho nas eleições municipais de 2016 e no projeto “volta, Lula” em 2018, já avisou a presidente que quer comandar mais pastas com capilaridade social, como o ministério das Cidades, hoje nas mãos do PP, cujo orçamento é de R$ 23 bilhões. Desde o final das eleições, o PT avalia que perdeu força em importantes cidades grandes e médias do Brasil, principalmente em São Paulo, e que precisa reduzir o antipetismo se quiser recuperar musculatura eleitoral. Para isso, avalia a necessidade de assumir ministérios com “caneta e tinta”, como são descritas no jargão político as pastas com muita verba disponível para investimentos. De intelectuais de esquerda, passando pelos representantes da direção partidária e até por boa parte de seus mais de um milhão e meio de filiados, ninguém esconde que o partido enfrenta o momento político mais delicado desde sua fundação em 1980. “O PT tem que retomar sua capacidade de fazer política cotidiana e sua independência frente ao Estado”, entende Tarso Genro, ex-governador do Rio Grande do Sul. Para o presidente da legenda, Rui Falcão, é necessário aprofundar o diálogo “tanto com os petistas quanto com aqueles que não são do PT e que criticam, sob diferentes ângulos, nosso partido”.

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Não se deve desconsiderar também as motivações pessoais que fizeram com que Marta Suplicy elevasse o tom das críticas ao se despedir do governo. A modulação da mensagem de adeus guarda relação com os planos eleitorais da petista. Ao deixar o ministério alvejando a atual gestão, a senadora tenta se aproximar mais do eleitorado de classe média de São Paulo, atualmente refratário ao PT. Dessa forma, acredita que poderá pavimentar o caminho para retornar à Prefeitura em 2016 pelo PT ou mesmo por outro partido, já que dificilmente o atual prefeito Fernando Haddad abrirá mão da reeleição. Já surgiram convites do PMDB e até do PR. “Nas entrelinhas, o que se quer dizer é: Marta Suplicy será uma senadora independente, candidata a prefeita em 2016, com ou sem o apoio de Dilma, de Haddad, do PT e de Lula”, avalia o cientista político da Universidade de Brasília, Antônio Lassance. “Marta nunca foi dilmista, nem lulista. Ela sempre foi simplesmente martista”, resume.

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Com os olhos voltados para as planilhas eleitorais, o foco na governabilidade e na sobrevivência política, o novo PT que sai das urnas e sua relação com o governo voltarão a estar em debate nos próximos dias 28 e 29 de novembro, em Fortaleza, quando a direção nacional vai se reunir para discutir os rumos da legenda para os próximos quatro anos. A julgar pelas últimas declarações de petistas históricos, Dilma não deve esperar elogios e gentilezas.

Fotos: Sergio Lima/Folhapress; Fabio Rodrigues Pozzebom/ABr, ROBERTO CASTRO; EFE/Morell