Wassily Kandinsky gostava de pintura, mas achava pouco louvável um russo nascido naqueles tempos difíceis, o final do século XIX, se dedicar à arte. “Achava que, para um homem russo, a arte era um luxo inadmissível”, escreveu em sua autobiografia. Filho de mercadores de chá da Sibéria, especializou-se em direito trabalhista e poderia ter sido um dos grandes catedráticos de Jurisprudência na Universidade de Moscou, não tivesse embarcado em uma excursão científica com os colegas de turma para Vologda, no extremo noroeste do país. A etnografia era uma febre nas universidades na virada daquele século e o jovem estudante que se tornaria, além de artista fundamental do modernismo, um dos maiores teóricos das vanguardas artísticas do começo do século encontrou nas tribos nórdicas primitivas o que dizia sentir falta em quase tudo que o cercava: alma.

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FIM DA FIGURA
"Improvisação no 11", tela de 1910 realizada para a primeira
exposição de arte abstrata, na Alemanha

A exposição “Kandinsky: Tudo Começa num Ponto”, que poderá ser vista a partir da quarta-feira 12, no Centro Cultural Banco do Brasil de Brasília, apresenta não só as mais importantes pinturas do inventor da arte abstrata, mas também peças criadas por grupos étnicos da tundra russa e de países como a Finlândia. A partir daquela excursão universitária, alimentou sua produção com a visualidade e códigos do folclore de sua origem e, principalmente, com o conteúdo místico de práticas como o xamanismo e a bruxaria. “Kandinsky acreditava no conceito de espíritos bons que povoavam, invisíveis, o espaço aéreo. Para ele, todos nasciam com essa alma imaterial – que os nórdicos chamavam de ort”, conta Evgenia Petrova, diretora do Museu Russo, que veio ao Brasil para a abertura da mostra que segue depois para Rio de Janeiro, Belo Horizonte e São Paulo, permanecendo por dois meses em cada capital.

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REVOLUÇÕES
Acima, "No Branco", tela de 1920 do Museu Estatal Russo.

Por isso, a preocupação da curadoria em trazer do mesmo museu obras etnográficas que passaram pela pesquisa espiritual de Kandinsky, como o poema épico “Kalevala”, considerado peça inaugural da cultura finlandesa, ou a vestimenta xamânica do grupo étnico Sharnuud-Darhad, da Mongólia (leia quadro ao lado). Petrova, famosa no circuito mundial de arte pelo pulso firme com que guarda as 400 mil peças do acervo que atravessou uma revolução social, duas guerras mundiais e a alternância dos sistemas capitalista e socialista, diz que o Brasil verá uma montagem única, com empréstimos feitos de outros sete museus russos, além de coleções particulares da Alemanha, Áustria, Inglaterra e França. “Conseguimos reunir as obras que o próprio Kandisnky sugeriu para a exposição realizada na criação do “Cavaleiro Azul”, relata a diretora, que, graças ao imenso acervo técnico do museu, pode deslocar as pinturas de Kandisnky, como a célebre “No Branco” (reproduzida na página anterior), uma tela de quase 10 m2, sem prejudicar o público moscovita.

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Foto de Wassily Kandinsky dedicada ao amigo Arnold Schoenberg,
criador do dodeca-fonismo, que revolucionou a música
como a abstração transformou a pintura.

“O museu é uma instituição gigante, o que nos permite criar alternativas às obras que retiramos das salas. Mas foi necessária uma negociação árdua, que durou cinco anos e envolveu inclusive as autoridades patrimoniais do Ministério da Cultura de nosso país”, acrescentou ela, em entrevista à ISTOÉ. “Trazer essa exposição ao Brasil, por um tempo tão prolongado, é de fato uma decisão inédita.”

A mostra desenhada especialmente para o Brasil traça os primórdios da trajetória de Kandinsky como pintor. Se o encontro com as culturas primitivas e mágicas do norte encorajou o jovem universitário a se voltar para a pintura, nos anos de 1890, foi só 20 anos depois, em contato com a música, que o artista conseguiu se libertar da figura. “O que serviu de impulso para a reviravolta de Kandinsky foi, entre outros fatores, a ópera ‘Lohengrin’, de Wagner. Ouvindo a ópera, associou a música com os poentes de Moscou, quando as cores se inflamam uma atrás da outra, antes de transformar a cidade em uma mancha vermelha que soa como o acorde final, um ‘fortíssimo de uma orquestra enorme’”, escreve Evgenia Petrova no texto do catálogo que acompanha a mostra.

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Óleo sobre vidro, "Amazonas com Leões Azuis" de 1918

Kandinsky, de fato, amava Moscou. Os gestos rítmicos e geométrios de sua pintura a partir de 1910 muitas vezes reproduzem o movimento
do skyline da cidade czarista. Mesmo partindo desses elementos figurativos, e justamente a sua transformação em formas dissonantes, esse período marca a incorporação definitiva da abstração, a materialização da espiritualidade que o pintor perseguiu por toda a vida. Kandinsky morreu na França, depois de muitos anos na Alemanha – ele foi um dos últimos professores a deixar a Escola Bauhaus, fechada pelo nazismo.

“Esse conjunto de obras que nunca estiveram juntas oferece um conhecimento verdadeiramente panorâmico da vida e obra de Kandinsky, da perspectiva da sua cultura de raiz, a russa”, diz Evgenia Petrova.  

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Fotos: Kandinsky, Wassily/ AUTVIS, Brasil, 2014