Fazer a retrospectiva do século que se encerra é uma proposta tão atraente quanto perigosa. Atraente, porque particularmente o século XX é o mais variado registrado na história da humanidade, devido ao desenvolvimento das diferentes formas de comunicação. Perigosa, porque óbvia. Mas, felizmente, não há nada de óbvio no livro do escritor mexicano Carlos Fuentes, Os anos com Laura Díaz (Rocco, 470 págs., R$ 22). Trata-se, ao contrário, de um exemplo, um ótimo exemplo, de como fazer boa literatura a serviço da informação.

Ao tomar como ponto de partida a saga de uma família em torno da apaixonante e apaixonada personagem principal Laura Díaz, que absorve ao longo da trama as mais importantes influências que formaram o caráter da mulher atual, Fuentes conseguiu mostrar o século XX de um ponto de vista diferente do habitual, aquele das revistas semanais americanas e sua área de influência. Aqui, a história é vista sob a ótica nem sempre privilegiada – ao contrário, é crua e incômoda – de quem assiste a tudo do quintal do planeta, esta parcela conflituosa de países situados ao Sul do continente, na fronteira com os Estados Unidos.

É graças a essa ótica subdesenvolvida que Fuentes se esbalda na descrição de fatores que influenciam a vida mexicana – e em boa parte a de todos os grandes países latino-americanos – ao longo dos anos. As revoluções que chegam a bordo de ideologias nem sempre conhecidas (e menos ainda compreendidas) e que, antes mesmo do primeiro tiro, são devidamente adequadas ao ritmo dos trópicos. Os modismos e as atitudes das sociedades européias que, transmutados para a vida mexicana, geram situações ridículas, de puro pastelão e melancolia, babados e bailados em desencontro. E os pudores das morais de paragens mais geladas, que não sobrevivem ao calor do Novo Mundo. Tudo são contrastes e tudo é parte de uma paisagem implacável de cores fortes.

Este também foi o século dos muralistas mexicanos que tiveram em Diego Rivera e sua inseparável mulher, a também artista plástica e alma conturbada Frida Kahlo, suas maiores expressões. E é a partir de um mural de Rivera, pintado sob encomenda para a família Ford, em Detroit, Estados Unidos, que se cria todo o fio condutor da história. Uma história que fala da Guerra Civil Espanhola e dos exilados do mac arthismo com a mesma malemolência que fala do cardápio da família. São influências e temperos de uma receita maior, a rica e intensa existência de Laura Díaz. Uma vida que vale qualquer pena ser lida.