Silva

O motorista que aproveitou o feriadão de 7 de Setembro para deixar o Rio de Janeiro em direção às praias de Búzios, Cabo Frio e outras cidades do litoral fluminense desembolsou, a cada dez quilômetros rodados, R$ 1,03 para a concessionária Via Lagos, administradora da rodovia. No Rio Grande do Sul, quem seguiu de Porto Alegre até as badaladas praias no norte do Estado também passou por uma estrada entregue à iniciativa privada, mas pagou, pelos mesmos dez quilômetros, R$ 0,35 à concessionária gaúcha – 200% a menos. Já na viagem entre a capital paulista e a cidade de Barretos (438 km), o usuário teve de parar em nove pedágios (R$ 32,80, no total), administrados por cinco diferentes empresas. Aberrações como essas despertam a suspeita de que houve graves falhas no modelo de privatização das rodovias brasileiras. Sobretudo quando tal desconfiança parte dos próprios autores das regras de concessão, os governos estaduais e federal. Dos sete Estados que há cinco anos abriram mão de suas estradas, seis resolveram pegar um retorno e refazer os contratos em busca de um pedágio menor. Na corrida para recuperar a popularidade, vale tudo: culpar a gestão anterior pelo modelo adotado, retirar obrigações das administradoras ou até angariar recursos no Exterior para ratear o custo das obras entre todos os contribuintes. Até quem não tem carro vai pagar esta conta.

Fotos: Renato Velasco
“A tarifa cobrada pela Via Lagos é a mais alta que eu já paguei” Paschoal Del Matto Filho, comerciante paulista, sobre a estrada que leva à Região dos Lagos (RJ)

A Agência Reguladora dos Serviços Públicos do Rio, por exemplo, se prepara para reduzir pela metade o pedágio da Via Lagos. Tudo dependerá da proposta feita pelo governo na semana passada à concessionária: entrar com 50% da verba para a duplicação de vários trechos da rodovia. “Eles estão bastante satisfeitos com o acordo”, adianta o diretor da Agência, Ranulfo Vidigal. Não é para menos. Se recusar a ajuda do Estado e mantiver os preços atuais, a Via Lagos corre o risco de ficar às moscas: daqui há um ano será inaugurada uma nova estrada, sem pedágios, subsidiada pelos cofres públicos. O comerciante paulista Paschoal Del Matto Filho, 40 anos, é o exemplo de quem escolheria o percurso gratuito. Na terça-feira 5, ele passou pela primeira vez neste ano na Via Lagos e levou um susto com o preço. “A tarifa é a mais alta que já vi”, surpreendeu-se Paschoal, que até então se considerava escolado com os pedágios do seu Estado. “O pior é que a estrada nem tem uma divisória no meio nas pistas duplicadas”, protesta.

A Bahia também decidiu recentemente tirar a mão do bolso para ficar bem com seus motoristas. A única rodovia já licitada é a Linha Verde (de Salvador à divisa com Sergipe), cujo pedágio é de R$ 2,05. As demais serão bancadas pelo Estado e terão um pedágio inferior a R$ 1 só para manutenção do trecho. Em Minas Gerais, o secretário dos Transportes, Maurício Guedes de Mello, confessa que esperou a poeira da greve dos caminhoneiros baixar para retomar o programa de concessões. Ele diminuirá 25% a tarifa do contrato original (hoje R$ 1,95) e passará a cobrar aluguel das concessionárias. As empresas, por sua vez, serão compensadas reduzindo o número de ambulâncias, deixando de fornecer serviço de guincho e de manter as rodovias vicinais, agora entregues ao Estado. “Os motoristas já pagam seguradoras particulares”, justifica o secretário.

No Rio Grande do Sul, a vontade do governador Olívio Dutra (PT), eleito em 1998, é de fazer picadinho dos contratos tamanha a rejeição às regras de concessão definidas pela gestão anterior, de Antônio Britto (PMDB). Todas as tarifas estão congeladas desde a entrega das estradas em 1996. A Secretaria dos Transportes do Estado nem sequer cogita da hipótese de bancar as obras das concessionárias e propõe às empresas um reajuste de até 33,4%. Mesmo com o aumento, as estradas gaúchas manteriam o título de menor pedágio do País – R$ 0,03 por quilômetro, contra a média nacional de R$ 0,05. “Estamos no limite, não temos escolha”, responde Sérgio Coelho, da Associação Gaúcha das Concessionárias. Já em Santa Catarina, o governador Esperidião Amin (PPB) teve mais sorte. Como as concessionárias ainda não haviam implantado praças de pedágio, deu tempo de cancelar os contratos firmados na gestão de Paulo Afonso (PMDB). Só o Estado do Paraná não pôde colocar a culpa na administração passada ao manter a tarifa pela metade, reduzida em agosto de 1998, véspera da eleição que manteve o governador Jaime Lerner (PFL) no cargo.

Ricardo Giraldez
“Cheguei a dispensar serviço por conta do preço do pedágio” José Alberto Síveris, caminhoneiro de São Borja (RS)

Vistas em conjunto, as tentativas de reconciliação dos seis governos até animam o usuário. Contudo, na maioria das concessões em vigor, o abacaxi dos contratos mal formulados vai continuar sendo descascado pelo motorista até 2020, quando a maior parte deles se encerra. É o caso da concessão da BR-376, que liga Curitiba a Ponta Grossa. Num trecho com menos de 20 quilômetros, há duas praças de pedágio, cobrando uma média de R$ 0,30 por quilômetro, ou seja R$ 6. A estrada é passagem obrigatória para os que deixam Curitiba rumo à cidade turística de Vila Velha. A administradora paranaense Rodonorte diz que os valores e a localização das praças foram definidos no edital. O secretário de Transportes do Paraná, Heinz Herwig, completa o descaso: “Se eles acharam por bem deixar assim, mudar agora é muito complicado.”

 

Ao dividir o total pago nos pedágios pela quilometragem rodada num trajeto de ida e volta, ISTOÉ chegou ao ranking do percurso mais caro, entre os já concedidos no País. Nos dois extremos, a diferença no preço cobrado pelas concessionárias (leia tabela) é de quase 600%. As empresas têm justificativas. Cada Estado tem suas regras de concessão e cada estrada tem suas características (número de faixas, localização, extensão e fluxo de veículos). Isso, porém, não muda a situação do usuário. Em países como a França, o valor das tarifas chega a ser duas vezes mais caro. A diferença é a de que lá há rodovias alternativas de graça, além de a renda por habitante ser cinco vezes superior à do Brasil. Sem poder escolher a estrada pelo preço cobrado, o brasileiro ou viaja naquela rodovia, ou pega um avião, ou nem sai de casa.

Heitor Nickel
Moradores de Alphaville fecham a rodovia Castello Branco: briga contra o pedágio

Fora da pista – Em São Paulo, nos últimos dois anos, de cada cinco motoristas que trafegavam por rodovias estaduais, um desistiu de viajar de carro, segundo a Comissão de Concessões da Secretaria dos Transportes. Para o órgão, tudo vai às mil maravilhas, algumas obras estão até adiantadas e o índice de aprovação das vias é de cerca de 90%. O Estado, onde houve reeleição, é o único que está fora da lista dos que maldizem os contratos feitos no mandato anterior, que repassaram a 12 concessionárias 3.500 quilômetros de estradas – o equivalente a 40% do total da malha rodoviária já privatizada no País. Pelas regras da licitação paulista, a empresa vencedora foi a que pagou o maior ônus (uma espécie de aluguel ao Estado) para explorar as estradas obedecendo um pedágio e um cronograma de obras. A verba é enviada ao Departamento de Obras e Rodagem (DER) para manter estradas ainda não privatizadas. De 1998 até hoje, o órgão já recebeu R$ 380 milhões das concessionárias – metade do que a Nova Dutra vem gastando desde 1996 na recuperação dos 400 quilômetros da via Dutra.

Apesar dos elogios oficiais, a Comissão de Concessões inclui duas mudanças na segunda fase do edital de licitação das estradas. A partir do 10º ano do contrato, as empresas terão de reduzir em 1,2%, a cada 12 meses, o valor do pedágio. E os ganhos das empresas com a locação de cabos de fibra óptica podem aumentar para 25% do total arrecadado nos pedágios, para compensar uma tarifa menor. Hoje, a comissão jura de pés juntos que as concessionárias cumprem a proibição de receber receitas extras (inclui a fibra óptica), quando a soma for superior a 5% do valor da arrecadação do pedágio.

Max G Pinto
“Em Alphaville, para andar nove quilômetros, pagaremos R$ 3,50” Francisco Pereira Lima, presidente das associações de moradores da região

A Assembléia Legislativa paulista não ficou convencida disso e abriu em novembro uma CPI. Descobriram que as concessionárias falam a verdade quando dizem que o lucro só vem daqui a seis anos e que o valor é alto, pois inclui impostos, aluguel para o DER paulista e custos operacionais da empresa – 60% do bolo. E mais, o governo não fez um estudo específico sobre o preço para a concessão. Foi usado o valor do sistema Anhanguera–Bandeirantes, que, antes da concessão, sustentava o caixa das estradas no Estado.

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Vista grossa – O Ministério dos Transportes se cala diante das trapalhadas nos contratos feitos com estradas estaduais. Afinal, ele também se arrepende de alguns pontos do edital de concessão das rodovias federais e, como nos Estados, irá diluir o prejuízo entre os todos os contribuintes. Nas estradas de menor movimento, não haverá pedágios. O DNER, subordinado ao Ministério, pagará às futuras concessionárias para cuidar apenas da manutenção. Diferentemente do que acontece hoje, nas próximas concessões as empresas não poderão descontar no pedágio despesas com obras imprevistas, a tarifa será no máximo R$ 3 (com cobrança num só sentido) e o ganho com a exploração da fibra óptica em trecho federal ficará com o governo. A Nova Dutra, por exemplo, deve faturar R$ 9 milhões por ano com o serviço. A soma de R$ 1,8 bilhão para a duplicação da Fernão Dias e da Régis Bittencourt, ainda não concedidas, também é fruto do endividamento do governo, a fim de não encarecer a tarifa. “Estamos aprendendo a lição com os erros do passado”, acredita o ministro Eliseu Padilha.

Carlos Magno
“As pessoas passaram a pagar para sair de casa depois do pedágio em Teresópolis” Ângela Figueiredo, advogada

No meio desse aprendizado há a indignação do usuário. Prestador de serviços para empresas do interior paulista, o analista de sistemas Ayrton Farah tem prejuízos financeiros e afetivos por causa dos pedágios. “Diminuí as visitas aos meus pais em São José do Rio Pardo porque tenho de pagar cinco pedágios da capital até lá”, conta. Na tentativa de amenizar a situação, passou a consultar sites na internet e mapas rodoviários em busca de caminhos alternativos. Em Barueri, a insatisfação dos usuários foi parar na Justiça. As associações de moradores e empresários da região de Alphaville argumentam que a concessionária Viaoeste irá cobrar a tarifa mais cara de São Paulo, no trecho de nove quilômetros entre a cidade e a capital. “Teremos de pagar R$ 3,50 quando o valor correto seria R$ 0,54. Isso é ilegal”, reclama Francisco Pereira Lima, coordenador do movimento. Em maio deste ano, o promotor Marcos Mendes Lyra entrou com uma ação na Justiça questionando a legalidade da cobrança. Isso porque a Lei nº 2.428, de 1953, proíbe a instalação de pedágios a menos de 35 quilômetros do centro de São Paulo. A Viaoeste alega que a lei não está mais em vigor e está apenas cumprindo o contrato.

No Rio, a incompatibilidade entre o que foi acertado no papel e a realidade dos usuários também virou um imbróglio judicial. Os moradores de Teresópolis pedem o fim do pedágio em Três Córregos, que dividiu a cidade em duas a ponto de os moradores de bairros mais distantes terem de pagar para levar seus filhos na escola ou recorrer a um hospital. “As pessoas passaram a pagar para sair de casa”, protesta a advogada Ângela Figueiredo. A rodovia Rio–Teresópolis poderia ter a segunda pista no trecho de serra e uma cobrança menor de pedágio se dependesse do edital de concessão de 1994. Isso não ocorreu, entretanto, porque o DNER aprovou um novo edital que não mencionava a duplicação e o atual modo de cobrança, mas até aí várias empresas já haviam perdido a chance de concorrer.

Caminhoneiros – Se os donos de veículos de passeio reclamam, os motoristas de caminhões esperneiam. Na última paralisação da categoria ficou acordado que as transportadoras pagariam o pedágio do percurso, o que não tem ocorrido em 90% dos casos, segundo Botelho. “Quando a gente reclama, a transportadora dá a carga para outro”, diz o caminhoneiro gaúcho Dionísio Tadeu Oliveira. “Cheguei a dispensar serviço por causa do preço do pedágio”, acrescenta o amigo de estrada, José Alberto Síveris. Numa viagem de São Paulo a Goiânia, por exemplo, ele recebe um frete de R$ 350, em média. Em compensação, terá de desembolsar, ida e volta, R$ 138,20 de pedágio. A Associação Brasileira dos Transportadores de Cargas lamenta o fato de que nem ela nem a Confederação Nacional dos Transportes (CNT) foram convidadas para as reuniões que decidem o futuro das tarifas. Hoje, perto de 85% de tudo que se produz no País é transportado direta ou indiretamente via terrestre. “A pior situação é nas estradas do interior de São Paulo”, desabafa Nelio Botelho, presidente do Movimento União Brasil Caminhoneiro. “Se continuar assim, não descartamos a possibilidade de parar o País”, ameaça.