O indiciamento é falso. E é ilegal, pois o tribunal não foi criado pela Assembléia Geral da ONU. Assim, não tenho que apontar um advogado de defesa para um órgão ilegal.” A arrogante declaração foi dada pelo ex-presidente da Sérvia, Slobodan Milosevic, ao juiz britânico Richard May, que presidiu na terça-feira 3, em Haia (Holanda), a sessão de abertura do Tribunal Penal Internacional (TPI) para crimes na ex-Iugoslávia, que julgará o ex-ditador sérvio. O descaso em relação ao tribunal, criado em 1993 pelo Conselho de Segurança da ONU para investigar e julgar os crimes ocorridos durante a guerra da Bósnia (1992-95) e do Kosovo (1999), não parou por aí. O juiz May perguntou se Milosevic gostaria que fosse lido o indiciamento, em que ele é acusado de “crimes contra a humanidade” no Kosovo, província sérvia com 90% de albaneses. Os delitos incluem assassinatos, “limpeza étnica” de albaneses, massacres e estupros. E novamente veio chumbo grosso em direção ao juiz: “Problema seu”, respondeu o insolente Milosevic.

É a primeira vez, desde o Tribunal de Nuremberg (que julgou os crimes de guerra dos líderes nazistas), que um governante europeu senta no banco dos réus com acusações de crimes contra a humanidade. Este conceito jurídico, criado por Nuremberg, prevê que crimes como tortura e genocídio são imprescritíveis e dirigentes responsáveis por esses delitos devem ser julgados por leis e tribunais internacionais.

Hábil manipulador de imagens, Milosevic vestia um terno cinza-escuro e a mesma gravata usada em abril de 1999 quando, como presidente da Iugoslávia, proclamou, perante uma multidão, a vitória sobre a Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan). A aliança militar ocidental havia bombardeado a Iugoslávia durante 78 dias, obrigando os sérvios a saír do Kosovo.

Homem forte da Iugoslávia durante 13 anos (1987-2000), Milosevic sobreviveu à guerra da Bósnia e aos ataques da Otan, mas, em outubro passado, tentou fraudar as eleições presidenciais e acabou derrubado por um levante popular. Ainda assim, manteve o controle do maior partido do país, o Partido Socialista (ex-comunista). Ele foi preso em abril em Belgrado e extraditado na sexta-feira 29 para a prisão de Scheveningen, na Holanda. Sua deportação ocorreu graças à pressão internacional e, mais exatamente, dos EUA, que colocaram a extradição como condição sine qua non para a liberação de empréstimos financeiros à Iugoslávia, à espera de ajuda do Banco Mundial e do FMI. Para ter direito a US$ 1,3 bilhão, o premiê da Sérvia, Zoran Djindjic, ignorou decisão da Corte Constitucional que suspendia um decreto de extradição de Milosevic para que este fosse analisado à luz da Constituição e entregou o ex-dirigente à Corte de Haia.
 

A promotora brasileira Cristina Romanó faz parte da seleta equipe da promotora Carla del Ponte, que redigiu o documento que indiciou o ex-presidente da Iugoslávia em 1999. Na época, ao ser entrevistada por ISTOÉ, a curitibana afirmou que o tribunal “era a única esperança para os que sofreram atrocidades”. Até o início do julgamento, previsto para o dia 27 de agosto, Carla del Ponte quer indiciar Milosevic também pelos massacres cometidos pelos sérvios na Croácia e Bósnia, onde 250 mil pessoas morreram. O ex-presidente pode pegar prisão perpétua. Existem ainda outros 38 criminosos sérvios, bósnios e croatas com prisão pedida pelo TPI. Entre eles, estão quatro ex-assessores de Milosevic e os líderes sérvios bósnios Radovan Karadizic e Ratko Mladic. “Eles foram indiciados há quase seis anos e ainda não foram presos. Isso é escandaloso”, afirmou Del Ponte. “Ao que parece, Karadzic é protegido pelas autoridades da República Sérvia da Bósnia”, disse. 

Estadistas ou facínoras?

No século XX, Estados massacraram populações civis, na guerra ou na paz, numa escala nunca vista antes. Até o fim da guerra fria, nenhum líder acusado de genocídio ou de graves violações de direitos humanos tinha ido a julgamento. Agora, pela primeira vez, alguns desses facínoras estão no banco dos réus. Para muitos, os EUA se opõem à criação de um tribunal penal internacional, por medo de que sejam indiciados figurões como Henry Kissinger, ex-secretário de Estado, responsável por bombardeios no Vietnã e Camboja e por ajudar a brutal repressão chilena.

Augusto Pinochet

O general e atual senador vitalício comandou uma ditadura militar (1973-90) que eliminou cerca de três mil pessoas no Chile. Detido em Londres em outubro de 1998 por solicitação do juiz espanhol Baltasar Garzón, Pinochet acabou libertado e voltou ao Chile 17 meses depois, mas perdeu a imunidade parlamentar e foi colocado em prisão domiciliar por determinação da Justiça chilena. Velho e doente, o ex-homem forte do Chile agora luta para evitar humilhações, como ser fichado pela polícia.

Jorge Rafael Videla

Líder da primeira junta de comandantes da ditadura militar argentina (1976-183), que fez “desaparecer” 30 mil pessoas. A eliminação sistemática de opositores foi planejada pela cúpula castrense. Condenado à prisão perpétua em 1985, no primeiro processo contra militares na América Latina, Videla foi indultado cinco anos depois pelo presidente Carlos Menem. Em 1998, foi novamente processado, desta vez por sequestro de crianças. Está em prisão domiciliar à espera de novo julgamento.

Suharto

Ditador da Indonésia até 1998, o general Suharto liderou um sangrento golpe militar, em 1965, que eliminou entre 700 mil a um milhão de cidadãos, grande parte de origem chinesa e ligados ao Partido Comunista. Dez anos depois, a Indonésia invadiu e anexou o Timor Leste, então colônia portuguesa. Durante 24 anos, a selvagem repressão indonésia causou a morte de cerca de 200 mil pessoas, um quarto da população. Apesar de estar sendo processado por corrupção, Suharto nunca foi indiciado por crime de genocídio.

Hun Sen e Khieu Samphan

Dois dos lugar-tenentes de Pol Pot, dirigente da ditadura comunista que tomou o poder no Camboja em 1975. O regime do Khmer Vermelho obrigou a população das cidades a se deslocarem para o campo, provocando a morte de 1,7 milhão de cambojanos (20% da população), muitos deles executados e outros vítimas da fome e de trabalhos forçados. Hun Sen (foto) se aliou aos vietnamitas que derrubaram o Khmer em 1979 e virou premiê, e Khieu Samphan voltou à vida política em 1998.

Saddam Hussein

Em 1988, o dirigente iraquiano mandou bombardear cidades curdas com armas químicas, matando oito mil civis e forçando outros cem mil a fugir para a Turquia. O ataque foi uma tentativa de eliminar a guerrilha curda, que apoiou o Irã durante a Guerra Irã-Iraque (1980-88). Na época, os governos ocidentais – que forneciam armas e dinheiro ao Iraque – fecharam os olhos às atrocidades. Afinal, Saddam Hussein representava um dique às ambições dos aiatolás revolucionários do Irã.