Yves Saint Laurent deixou razões de sobra para ser reconhecido no mundo como o grande herói fashionista de seu tempo. Argelino que não conseguiu servir o Exército, tornou-se herdeiro do até então inalcansável Christian Dior depois de galgar com humildade uma carreira começada de baixo. Primeiro estilista a vestir uma mulher com smoking, Saint Laurent iniciou um movimento irreversível do modo de vestir de todo o mundo a partir da década de 1960, revolução só comparável ao uso dos tecidos de segunda mão incorporados à alta-costura por Gabrielle Chanel, 30 anos antes. Por isso não é de se estranhar que caibam em um mesmo ano duas estreias mundiais no cinema sobre a sua trajetória. Mas “Saint Laurent”, filme do francês Bertrand Bonello previsto para estrear no Brasil em meados deste mês, traz uma face diferente do que se viu em “Românticos Anônimos”, de Pierre Niney, exibido no País em abril. O filme de Niney narrava a história de amor do estilista e Pierre Bergé, grande amor de sua vida e responsável pela continuação de seu legado, mantendo-se à frente ainda hoje, aos 83 anos, da fundação que leva o nome do casal. Já o novo longa-metragem, que a França escolheu para ser o seu indicado ao Oscar, faz um corte nos anos mais intensos da carreira e da vida do chefe de uma das maisons mais valorizadas da alta-costura – que o manteve na lista “Forbes” das personalidades que mais lucram por alguns anos depois de sua morte, em 2008. Foi mesmo entre as décadas de 1960 e 70 que Saint Laurent, interpretado dessa vez pelo ator francês Gaspard Ulliel, passou a ser reconhecido e reverenciado como uma assinatura de bom gosto acima do bem e do mal – que lhe permitiu provocações e ousadias como o corte masculino para moças e as transparências para todos. O que Bonello mostra é que o pico criativo do estilista coincide com uma fase instável e complicada da sua vida pessoal. Não por outra razão, o filme sai sem a bênção da Fundação Pierre Bergé-Yves Saint Laurent. Bergé, hoje um dos mais respeitados e poderosos defensores do casamento gay no mundo, sempre se manteve discreto em relação à vida amorosa e é avesso aos holofotes. E o filme mostra não só a ciranda amorosa em torno (e no meio) do casal, mas também o envolvimento com drogas e as crises pessoais de Saint Laurent, que nunca teria se curado dos traumas da época da guerra de independência da Argélia e do tratamento com eletrochoques a que foi submetido depois de colapsar como soldado, vítima de bulling dos colegas da rápida e infeliz carreira militar.

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AUGE
Acima, o ator Gaspard Ulliel como Yves Saint Laurent; abaixo,
o estilista, em seu ateliê nos anos 1960: fase mais criativa coincidiu
com período emocional mais conturbado

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Na primeira exibição, durante o Festival de Cannes deste ano, o diretor declarou que não ter o apoio de ninguém ligado a Saint Laurent o deixou livre para ir fundo no que chama de verdade. O resultado é um retrato menos glamourizado do que até hoje se mostrou do estilista, mas que o aproxima de um mundo que o interessava muito mais que a moda, a arte, que vivia, naquele momento, um grande caso de amor com experimentos químicos.

A trilha sonora vai de Velvet Underground (banda que teve a participação do amigo Andy Wharol) e Maria Callas, uma de suas divas inspiradoras. Explora bastante o romance com o modelo Jacques de Bascher (vivido por Louis Garrel), que se tornaria amante do colega Karl Lagerfeld – e desconfia-se que este tenha sido o ponto mais incômodo para o herdeiro do legado do designer.

Mas com toda a dedicação do diretor em trazer um lado desconhecido da vida particular de Saint Laurent, o filme homenageia sem economias a genialidade e a obstinação do estilista. Remonta com cores da época grandes desfiles que obrigaram o mundo a repensar a forma de se vestir. Apesar da exposição de falhas morais e fraquezas de espírito, a filme não deixa dúvidas de que a sigla YSL não se tornou um ícone mundial sem muito trabalho e uma espantosa sensibilidade em relação aos anseios da mulher.

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Fotos: Daily Mail/Rex Features/Glow Images; Spread Pictures; Divulgação