A semana que passou lembrou o terror de uma crise cambial. A cotação do dólar subiu 7% em cinco dias. Na quinta-feira 5, bateu R$ 2,47, a segunda maior da história do Real. Mais do que a firme tendência de alta, assustou os bancos e corretoras que operam nesse intrincado mercado a desastrada atuação do Banco Central, que acabou piorando as expectativas. Na quinta-feira, o mercado chegou a experimentar um sopro de alívio ao receber pela manhã a notícia de que o ministro da Economia argentino, Domingo Cavallo, conseguira chegar a um acordo em relação à dívida do governo central com algumas províncias, uma das pendengas fiscais do país. Mas bastou uma entrevista do diretor de Política Monetária do Banco Central, Luiz Fernando Figueiredo, para desandar as taxas de câmbio e fulminar as esperanças de um dia melhor. O BC decidiu anunciar que até o final do ano gastará US$ 6 bilhões – uma média de US$ 50 milhões por dia – para suprir a demanda dos bancos e empresas por dólares. Os operadores fizeram as contas e concluíram: é pouco, especialmente se a crise na economia Argentina se agravar ainda mais. A semana terminou com uma saraivada de críticas à atuação do BC e à expectativa de uma nova elevação nas taxas de juro.

As críticas vieram de várias frentes. Ao contrário de quem desaprovou o BC por não agir, o vice-presidente de mercado de capitais do BankBoston, Ricardo Gallo, considera que pior é o governo entrar no jogo em momentos de instabilidade. “O mercado entrou em uma espiral muito pessimista nos últimos dias, quase de histeria. Nesses momentos, não adianta simplesmente vender dólares. É como dar milho a bode, não resolve nada”, afirma Gallo. O fato concreto, como reconheceu Figueiredo, é que a munição para enfrentar a disparada do dólar é limitada. Daí que, às vezes, é melhor simplesmente deixar as cotações oscilarem, considera o executivo do BankBoston. “Nessas horas, é melhor deixar o mercado reagir à vontade, porque gera prejuízos para quem está especulando. Depois fica mais fácil derrubar as cotações”, avalia Gallo. No momento em que a cotação chega perto de R$ 2,50, como nos últimos dias, seria muito arriscado comprar moeda americana, considera. “Quem compra dólar a esse preço está apostando em uma inflação muito alta ou em uma crise econômica descontrolada. A meu ver, a chance de estar fazendo a aposta errada e, portanto, de amargar prejuízos pesados é muito grande”, afirma. Até aqui, no entanto, o que tem acontecido é as cotações andarem praticamente em um sentido, para cima. Sobem a qualquer notícia ruim ou mesmo boato – como o de renúncia do presidente argentino, De la Rúa, que circulou com força durante a semana –, mas mostram pouca disposição para recuar. “Quando o quadro melhora um pouco na Argentina, o câmbio não volta. E isso porque a incerteza é muito grande”, diz o economista Celso Toledo, sócio da consultoria paulistana MCM.

A criticada estratégia do BC não foi o único incidente dessa quinta-feira repleta de tropeços. Luiz Fernando Figueiredo também trocou farpas com o ex-presidente do Banco Central Gustavo Franco, que, em uma entrevista a uma agência de notícias, acusou o BC de falta de transparência. “As ações do BC continuarão sendo feitas no escurinho das transações bilaterais com dealers (bancos que vendem dólares em nome do BC)”, atacou Franco, prevendo o fracasso da estratégia do Banco Central de antecipar seu poder de fogo. “Com todo o respeito, no escurinho era como o ex-presidente do Banco Central operava nos mercados de câmbio futuro e de bradies (títulos do governo brasileiro negociados em Nova York). Se ele entendesse de mercado de câmbio, não teria jogado o Brasil na maior crise cambial de sua história, e estaria no cargo até hoje”, devolveu Figueiredo, por intermédio da assessoria de imprensa do banco.

Mercosul – Além das insinuações intrigantes, é possível ver na briga entre Figueiredo e Franco um embate entre duas posturas distintas em relação à política cambial. Franco é o homem que defendeu com unhas e dentes o câmbio fixo, que manteve o real sobrevalorizado. Usou taxas de juros estratosféricas para atrair capital estrangeiro a qualquer custo, até que a estratégia foi para o espaço no início de 1999, pulverizando dezenas de bilhões de dólares. Figueiredo, ao lado do atual presidente do BC, Armínio Fraga, considera que o melhor é deixar o câmbio flutuar com maior liberdade e só entrar no mercado justamente nesses momentos de nervosismo extremado.

Para piorar a situação, o governo brasileiro foi obrigado a reagir e comprar uma briga com a Argentina e, assim, debilitar ainda mais o vizinho. Isso porque a Argentina atropelou o Mercosul e decidiu por conta própria cortar as tarifas preferenciais a que o Brasil tinha direito na exportação para o mercado argentino de bens de capital, de informática e de telecomunicações. Cavallo nem sequer comunicou a decisão ao governo brasileiro. Em represália, o Itamaraty suspendeu a negociação de acordos comerciais com a Argentina até que o nosso parceiro de bloco comercial reveja as medidas prejudiciais aos exportadores brasileiros.

Ao revelar a quantidade de dólares que estava disposto a gastar para controlar o câmbio, o BC tentou passar a mensagem de que não pretende torrar todas as reservas que possui para atender especuladores. Mas quer deixar claro que pretende gastar bala para derrubar o dólar. “Assim como a moeda pode se apreciar, pode se depreciar. Não é verdade que o dólar tenha uma direção só”, endossou o ministro da Fazenda, Pedro Malan. Mas, na avaliação de alguns especialistas, o governo se equivoca ao tratar como “bolha especulativa” uma falta crônica de dólares que deve continuar empurrando as cotações para cima. A escassez, classificada como a grande fraqueza da economia brasileira, tem diversas origens, mas de modo geral se relaciona com decisões de política econômica do próprio governo, anteriores às crises de energia e da argentina. A privatização acentuou a presença de empresas estrangeiras na economia brasileira, que começam a mandar os lucros para suas matrizes. Exemplo disso são as ex-estatais de telecomunicações, mas também distribuidoras de eletricidade e mesmo grandes empresas privadas vendidas ao capital estrangeiro. O Real também estimulou as empresas nacionais a pegar empréstimos externos, que agora têm de ser pagos. Estima-se que, só neste mês, os compromissos externos cheguem a US$ 3 bilhões. No ano, os vencimentos devem somar US$ 30 bilhões. Em 2002, serão US$ 27 bilhões. Por outro lado, a receita do País em dólares anda fraquíssima. A pauta de exportações continua dominada por produtos de tecnologia elementar e de mercados mundiais pouco dinâmicos. O resultado mais recente da balança comercial, referente a junho, foi de superávit de apenas US$ 277 milhões, e o resultado no ano é negativo em US$ 70 milhões. Para completar, o investimento externo caiu.

Matriz – Além disso, os tais agentes que têm dívidas em dólar vêm tentando se proteger de novas disparadas nas cotações. Para controlar o apetite, dizem os operadores, o BC tem que, no mínimo, oferecer títulos cambiais, mesmo que isso signifique aumentar a dívida pública. “Não adianta nada o governo falar que tem US$ 6 bilhões para vender. Não tem que ficar falando, precisa agir. Mesmo porque, em muitos casos, são as subsidiárias de multinacionais que compram dólares para se proteger. E fazem isso porque a matriz manda, para evitar prejuízos em dólar, que é o que conta para elas. E isso só vai mudar quando a matriz mandar, e não quando BC quiser”, considera Luiz Antonio Vaz das Neves, diretor de pesquisas da corretora Planner, de São Paulo. Até as próximas eleições presidenciais, no ano que vem, dificilmente essa ordem virá, avalia Neves, já que a popularidade baixa do presidente FHC abre espaço para a oposição e para propostas alternativas de política econômica. Celso Toledo, da MCM, concorda com a avaliação: “A economia está desacelerando, corre o risco de entrar em uma recessão, o desemprego deverá aumentar, há a crise energética, e tudo isso gera uma incerteza política muito grande. Os investidores estão mostrando que preferem não correr esse risco.” Como outros analistas, Toledo acredita que a boa notícia que poderia criar um quadro mais otimista terá de vir das exportações. Na melhor das hipóteses. “É difícil imaginar de onde pode surgir um sinal positivo, mas um saldo mais forte da balança comercial poderia ter esse efeito”, avalia o economista.

Tarifas – Por tudo isso, o mercado não acreditou nas contas do BC e, de modo geral, avaliou que o banco errou ao mostrar armas tão frágeis no meio da batalha. Armínio Fraga vem se desgastando na tentativa de desatar o nó cambial em que o governo se meteu e já teve sinais de que não está mais com a bola toda. Exemplo disso foi sua derrota ao defender publicamente a isenção da CPMF para o mercado de capitais. A interlocutores próximos, Fraga deixou claro que não gostou nada da decisão de Malan de engavetar a proposta. Até porque o ministro teria sinalizado na direção oposta.

A maior preocupação de Fraga, no momento, tem a ver com uma promessa feita ao Fundo Monetário Internacional (FMI), de que a inflação brasileira em 2001 será de no máximo 6%. Como se sabe, é o tipo de compromisso visto como prioridade absoluta no Planalto. Nove entre dez especialistas, portanto, apostam que o BC aumentará novamente os juros na tentativa de conter o dólar e impedir que ele pressione os preços. Tudo pela meta. “O problema é que o preço da meta de inflação será a recessão, com desemprego e salários achatados”, avalia Cornélia Porto, do Departamento Intersindical de Estatísticas e Estudos Socioeconômicos (Dieese).

O efeito do dólar mais caro sobre os preços já é uma realidade, e especialmente no caso das tarifas controladas pelo governo. Do ponto de vista do consumidor, a questão não é a meta do FMI, mas o bolso. Na semana passada, por exemplo, foi anunciado um reajuste de energia elétrica de 16,61% para a Grande São Paulo. A principal razão é que pelo menos 25% da energia consumida pelo País, gerada em Itaipu, tem seu preço fixado em moeda americana. A gasolina também subiu, com reajuste de 8,3%, já que o preço do petróleo também é dolarizado. “O reajuste das tarifas significa que a inflação nos meses de julho, agosto e setembro será de, no mínimo, 0,6% ao mês”, diz o economista Heron do Carmo, da Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas (Fipe), instituição ligada à Universidade de São Paulo (USP). A Fipe estima que a inflação será de 5,5% no ano, mas poderá estourar a meta diante de uma geada mais forte que aumente o preço de alimentos perecíveis, como hortaliças e frutas. Ou seja, mais uma vez o governo depende da boa vontade de São Pedro.

Fôlego – Enfrentar o nervosismo do mercado com a alta dos juros é visto como uma solução ruim mesmo para analistas alinhados com o governo. “O BC deveria considerar a possibilidade de deixar a inflação ficar um pouco acima da meta e não impor mais esse sacrifício à economia real”, diz Sérgio Werlang, ex-diretor do BC. Os dados do próprio governo mostram que o patamar atual de juros vai estagnar a economia durante o segundo semestre. Se a taxa subir ainda mais, haverá queda do Produto Interno Bruto (PIB), ou seja, recessão. Entre os técnicos da área econômica, já há quem defenda outras alternativas, como medidas administrativas (obrigar os bancos a depositar dólares estocados no BC, sem remuneração) e a amarração de um novo acordo com o FMI, colocando à disposição do País um desembolso de fôlego – algo na casa dos US$ 15 bilhões – para enfrentar novas instabilidades. “No fim das contas, não tem jeito. O governo precisará mesmo vender dólares e atender à demanda”, avalia o economista Marcelo Allain, diretor de fundos de investimentos do Banco Inter American Express. A questão é saber quanto e a que custo para a sociedade.

Mazelas de um aluno sem imaginação

Júlio Sérgio Gomes de Almeida*

Diante da sucessão de fatores de instabilidade externa que se apresentaram em 2001, seria impossível que a economia brasileira deixasse de ser afetada. Alguns desses fatores são realmente graves, como a retração da economia-líder mundial – americana – e a crise na vizinha Argentina. Estamos metidos em uma grande enrascada porque o pior em ambos os casos ainda está por acontecer. Somente a partir deste mês, a retração mundial influenciará no desempenho de nossas exportações e a crise argentina ainda reserva momentos de aflição para o resto do ano. O pior de tudo é que neste último caso, a evolução da crise pode levar a uma suspensão de pagamentos ou a uma mudança do regime cambial, com o que, inevitavelmente, seremos “contaminados” na forma de uma turbulência cambial com consequências muito maiores do que os efeitos negativos da instabilidade cambial que estamos vivenciando.

Portanto, não devemos subestimar a gravidade da conjuntura atual. O outro erro de análise da presente situação está em atribuir poderes ilimitados ao Banco Central para controlar o mercado de câmbio. Ele não tem esses poderes e os instrumentos de que dispõe – basicamente a destinação de parte das reservas para intervenções no mercado cambial – estão sendo corretamente utilizados. Em certos momentos, o comportamento de seus dirigentes faz parecer que quem está à beira de um ataque de nervos é o psiquiatra, e não o paciente, o que aumenta ainda mais a instabilidade dos mercados, mas é louvável que resista à dolarização da dívida pública e ao retorno das taxas de juros estratosféricas do passado.

Não iremos precisar de fatores externos para projetar a economia em uma crise cambial se o Banco Central achar que controlará o câmbio com a elevação das taxas de juros, como se fazia no regime de política cambial anterior. Qual o nível de taxa de juros capaz de estabilizar a taxa de câmbio? Seguramente ninguém sabe e, talvez, nem exista essa taxa de juros nesse momento em que as expectativas se apresentam tão elásticas. “Elasticidade das expectativas” é um conceito desenvolvido pelo economista inglês John Hicks que pode ser útil para entendermos o que está acontecendo. Por que é tão alta aqui a “elasticidade das expectativas”? Por que acontecimentos importantes ou nem tanto afetam tão profundamente a economia brasileira? Por que uma crise como a da Argentina, que não chegou sequer a seu desfecho, abala os alicerces da política econômica no Brasil?

Definitivamente a resposta não está fora, mas, sim, dentro da economia. Às vezes, uma inexplicável incapacidade coletiva de analisar os fatos nos leva a ignorar o que deveria ser evidente. Nos primeiros meses de 2001 consolidou-se um déficit externo entre 4,5% e 5% do PIB, nível semelhante ao que deu partida à crise cambial de 1999. Antes que se conclua que a maxidesvalorização ocorrida naquele ano “não serviu para nada”, convém observar que sem a mudança cambial o déficit externo brasileiro seria hoje absolutamente insustentável: entre 5,5% e 6% do PIB. Portanto, a raiz do problema, o que explica essa enorme sensibilidade de nossa economia ao que acontece no exterior, é nosso setor Externo que é frágil.

No mundo globalizado em que vivemos, essa fragilidade é punida com rigor. Podemos neutralizá-la ou reduzir sua intensidade? A resposta é sim, mas será necessário que o governo acorde para o comércio exterior. É imprescindível a formulação de um programa para incentivar para valer as exportações e outro para promover investimentos visando reduzir os gigantescos déficits comerciais de setores industriais como o eletrônico e o químico. Entre a ação e os resultados concretos dessas medidas, não há como tirar a economia da armadilha cambial em que se meteu, mas o anúncio de uma política de comércio exterior consistente pode contribuir para diminuir a volatilidade das expectativas. Nesse meio tempo, ao aluno de pouca imaginação, mas de grande aplicação, não deveria faltar recursos isentos de condicionalidades provenientes do FMI e de demais tutores internacionais para amparar os momentos difíceis que ainda estão por vir…

* Júlio Sérgio Gomes de Almeida é diretor-executivo do Instituto de Estudos para o Desenvolvimento Industrial (Iedi)