Quem te viu, quem te vê. Chico Buarque, mito nacional incensado pelo talento e pela discrição, caiu na boca do povo depois de ter sido flagrado por dois fotógrafos num beijo lânguido no mar azul do Leblon com a produtora cultural, designer e fotógrafa carioca Celina Sjostedt – casada e mãe de dois adolescentes, de 12 e 13 anos. Desde que se separou de Marieta Severo, em 1996, a vida pessoal do cantor, compositor e escritor não se tornava notícia. Só que desta vez, o barulho é infernal. O assunto virou conversa de botequim. O marido de Celina, o pianista Ricardo “Duna” Sjostedt, não perdoou o compositor, a quem acusou de ser o lobo da história. Lobo persistente, que, segundo Sjostedt, atacou a primeira vez em 1999. Seja como for, as fotos nasceram de um descuido de Chico – que sabia da presença de fotógrafos naquele território. Estampadas na capa das principais revistas de celebridades do País, as imagens acenderam um debate nacional sobre o que é ou não invasão de privacidade, assunto sobre o qual até as avaliações jurídicas não são um consenso. A ação dos paparazzi também é questionada.

Fábio Cordeiro, 27 anos, seis de profissão, é um paparazzo que pelo menos três vezes por semana frequenta a praia do Leblon em busca de celebridades para fotografar. O Rio de Janeiro é uma espécie de Hollywood brasileira, em parte por abrigar os artistas da Rede Globo, só que com belas praias, o que deixa as pessoas naturalmente mais expostas. Naquela sexta-feira 25 de fevereiro, Cordeiro não precisou esperar muito – às vezes faz plantão de até oito horas. Uma babá deu a dica. Chico estava na área e ela também queria fotografá-lo. Ele ficou observando o cantor tirar o tênis, cumprimentar uma moça e ir para o mar. Logo em seguida, a moça mergulhou, eles conversaram, se abraçaram, se beijaram e saíram da água de mãos dadas. E o fotógrafo registrou tudo. “Invasão de privacidade é quando você tem que vencer um obstáculo ou entrar em propriedade privada.”

Ao lado de Cordeiro há opiniões de peso. Edson Vidigal, presidente do Superior Tribunal de Justiça (STJ), diz que, realmente, o fato de uma pessoa pública ser fotografada em local público não caracteriza invasão de privacidade. Ele cita o Carnaval de 1994, em que a modelo Lílian Ramos foi fotografada sem calcinha ao lado do presidente Itamar Franco. Vidigal adverte que fotos tiradas por cima de muros, com teleobjetivas, estas, sim, são claras violações de privacidade. Antônio Carlos de Almeida Castro, um dos mais conhecidos advogados de Brasília, lembra que não há diferenças entre pessoas famosas e desconhecidas em lugares públicos. “Se um casal é flagrado junto num jogo de futebol, e outros não poderiam saber, trata-se de uma infelicidade, e não de violação de privacidade.”

Maria Aparecida Daud, uma das principais advogadas do País na área de responsabilidade civil, tem outra opinião. “Mesmo o Chico Buarque sendo uma pessoa pública, houve invasão de privacidade. A lei é clara. A invasão de privacidade também acontece quando a revelação de um fato ou foto não tem interesse público. Se alguém descobre uma letra inédita do Chico, composta aos 14 anos, há interes-
se público porque ele é cantor e compositor.” No raciocínio de Maria Aparecida, “o Chico-pessoa” deve ser preservado. A advogada também defende Celina: “Ela é anônima e teve sua privacidade violada. O fato de estar com alguém famoso,
não a torna famosa.”

A discussão é quente. De acordo com o site Consultor Jurídico, em 2003 os grandes grupos de comunicação sofreram 3.342 ações, parte delas certamente pelo uso indevido da imagem. Pessoas que não são públicas terão direito à indenização se provarem que sofreram dano em sua vida pessoal. Consultor de imagem e autor do livro A era do escândalo, Mário Rosa não hesita em afirmar que a imagem de Chico não sofreu abalo. “Se alguém saiu respingado nessa história, foi a moça. Terá problemas na família, em seu círculo de amizades.” De qualquer modo, uma troca de afagos foi mais alardeada que uma vitória do Flamengo. “Uma coisa privada tornou-se muito mais pública do que algo naturalmente público.” E isso só vai aumentar daqui para a frente com a popularização dos celulares com câmeras e a possibilidade de as imagens serem postadas por e-mail.

Na internet – A intimidade nunca foi tão devassada como agora. Essa é a opinião do advogado Amaro Moraes e Silva Neto, autor do livro Privacidade na internet. “Projeta-se que em 2010 ninguém terá privacidade. O cidadão troca a liberdade pela segu-
rança e acaba ficando sem as duas”, diz Silva Neto. Como aconteceu no caso dos alunos de uma faculdade que, durante uma festa de calouros, em São Paulo, espalharam câmeras no local e as imagens – muitas com cenas de sexo – foram divulgadas na internet. O processo ainda corre na Justiça. “Não é porque está na rede que todo mundo faz o que quer com as imagens ou informações. Neste caso, quem repassou as imagens cometeu crime”, afirma Renato Opice Blum, advogado especializado em direito eletrônico.

A psiquiatra carioca Ana Beatriz Barbosa Silva, especializada em medicina do comportamento e autora do recém-lançado Sorria, você está sendo filmado, diz que, no Rio, muitos se doeram por Chico. “Não gostaram de saber que seu ídolo não pode sequer namorar na praia. Há respeito pelo que ele significa.” O professor Muniz Sodré, da Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), é co-autor de Cidade dos artistas: cartografia da televisão e da fama no Rio de Janeiro e faz coro com a psiquiatra. “O carioca da zona sul preza que o artista não seja incomodado. Todos conhecem algum, mas têm uma atitude de distanciamento, até para compor uma áurea de indiferença, de superioridade. E essa invasão da intimidade do Chico foi avessa a essa cumplicidade carioca que impera em relação aos artistas”, diz.