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Tido pelo Ocidente como líder de um “regime pária”, Gadafi agora paga resgate para libertar reféns ocidentais (próxima pág.)

Cerca de um ano atrás, ao se instalar no Hotel Sheraton em Argel, capital da Argélia, os representantes dos países que vieram participar de uma conferência da Organização da Unidade Africana (OUA) testemunharam uma cena insólita: no gramado daquele luxuoso hotel estava montada uma gigantesca tenda verde, cercada por guarda-costas armados até os dentes. Nela estava alojado ninguém menos que o todo-poderoso homem-forte da Líbia, o coronel Muammar Gadafi, que se recusara a ficar hospedado no Sheraton alegando que este representava “um símbolo do imperialismo americano”. O gesto circense do ditador líbio não chegou a surpreender, já que cabia perfeitamente no conhecido figurino de “pária do Ocidente”, mas encobria suas mais recentes intenções políticas. Estas indicavam, ao contrário do que o picadeiro em frente ao Sheraton sugeria, que o homem que no passado apoiava ações de grupos terroristas contra alvos ocidentais estava trocando as bombas pelas armas da diplomacia. Naquela conferência da OUA, Gadafi se desdobrou para obter um cessar-fogo entre os exércitos da Etiópia e da Eritréia. Os pendores de pacificador do “líder da revolução líbia” se tornariam ainda mais evidentes nos meses seguintes, quando ele tentou promover iniciativas conciliatórias para diminuir as tensões entre países do Norte da África. “Não podemos mais perder tempo com ideologias atrasadas como disputas fronteiriças, tribais ou étnicas”, proclamou Gadafi ao defender o incremento da cooperação econômica regional. Mas a metamorfose gadafiana ganharia contornos espetaculares na semana passada, quando seis dos 24 turistas estrangeiros sequestrados havia quatro meses na Malásia pelo grupo extremista islâmico filipino Abu Sayyaf e retidos na ilha filipina de Jolo foram libertados no domingo 27 por intermediação direta do governo da Líbia. Segundo muitas fontes, o coronel, que no passado sustentou ações de sequestros, teria pago o equivalente a US$ 6 milhões de resgate pelos seis reféns – dois franceses, um alemão, dois sul-africanos e um libanês –, que foram levados para Trípoli, capital da Líbia.

Tanta “generosidade” por parte do homem que queria ver o Ocidente pegar fogo, no entanto, surpreende apenas à primeira vista. Enfraquecido pelo colapso do bloco soviético e pelo isolamento da Líbia do mundo árabe-muçulmano, Gadafi já há algum tempo não tem medido esforços para romper o cordão sanitário montado pela comunidade internacional em torno de seu regime. A reviravolta tem se mostrado eficaz e, de quebra, o coronel também começa a exercer o papel de um respeitado líder regional. Dias depois da libertação dos reféns, o governo da França admitiu que o dirigente líbio poderá participar de uma cúpula da União Européia em Marselha, em novembro próximo. Seria a primeira visita do dirigente líbio a um país europeu desde o início dos anos 80, quando a Líbia foi colocada em quarentena por apoiar ações terroristas. O ministro das Relações Exteriores da França, Hubert Védrine, lembra que a normalização das relações da comunidade internacional com a Líbia começou há 18 meses, quando a ONU suspendeu as sanções econômicas e a União Européia abandonou o embargo comercial contra Trípoli – exceto o de armas. Segundo o jornal francês Le Canard Enchainé, Paris acertou uma barganha direta com a Líbia, trocando a intermediação para a libertação dos reféns estrangeiros – entre os quais havia seis franceses – pela conquista da respeitabilidade internacional para Gadafi. Como num bom jogo diplomático, a França e a Líbia, claro, negaram o troca-troca.

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A organização islâmica Abu Sayyaf chega a oferecer até US$ 1 mil para recrutar seus novos militantes

Ligações perigosas – De qualquer modo, a “conversão” de Gadafi não deixa de ser espetacular. Durante os anos 70 e 80, o ditador líbio apoiou as facções mais radicais da resistência palestina contra Israel, o que levou os EUA a bombardearem Trípoli e Benghazi em 1986, a pretexto de destruir bases terroristas. O palácio presidencial de Gadafi é mantido até hoje semidestruído, transformado em “monumento antiimperialista”. O episódio mais grave, no entanto, foi o atentado que derrubou o Jumbo da Pan-Am em Lockerbie (Escócia), em dezembro de 1988, atribuído a agentes líbios, que provocou a imposição de sanções da ONU à Líbia. Gadafi também vivia fomentando guerras civis na África, notadamente no Chade, além de treinar rebeldes de Serra Leoa e Libéria. Foday Sankoh, o líder da Frente Revolucionária Unida (FRU), de Serra Leoa – que ficaria conhecida pela macabra prática de decepar mãos, braços e pernas de civis –, recebeu treinamento militar na Líbia, assim como seu amigo Charles Taylor, que se tornaria presidente da Libéria. Os dois, além de Blaise Compaore, presidente de Burkina Faso – este também amigo do peito de Gadafi –, envolveram-se no contrabando de diamantes e armas que até hoje fazem daquela região um inferno particular na catástrofe africana.

Mas a recente iniciativa pacificadora de Gadafi é uma faca de dois gumes. Os rebeldes muçulmanos filipinos da Abu Sayyaf, que lutam por um Estado islâmico independente na ilha de Mindanao, integram hoje uma das mais eficazes organizações terroristas islâmicas. Com ligações com o arquiterrorista saudita Osama bin Laden e com Ramzi Yousef, o homem condenado pelo atentado contra o World Trade Center em Nova York em 1993, a Abu Sayyaf chega a oferecer cerca de US$ 1 mil por novos “recrutas”. E o pagamento do resgate parece ter animado os rebeldes. Dias depois da soltura dos seis reféns, a organização sequestrou um americano, exigindo a libertação de terroristas árabes presos nos EUA. Enquanto isso, o coronel Gadafi pode continuar posando de conciliador ao mesmo tempo que estende seus tentáculos à África do Norte e à Ásia. Como um bom diplomata, aliás.