Mais conhecida pelo exotismo de sua gente, pela natureza e ainda por abrigar o pulmão do mundo – a cobiçada Amazônia –, a América do Sul começou a ensaiar os primeiros passos no caminho da integração econômica e política, sob a batuta do maior de seus integrantes, o Brasil. Na metade de seu último mandato, o presidente Fernando Henrique Cardoso – assolado pelos números da impopularidade e pela falta de liderança interna – tenta agora ganhar pelo menos alguns trunfos com o público externo. Tido muitas vezes pelos seus vizinhos como submisso aos interesses dos Estados Unidos, o Brasil corre atrás do prejuízo, buscando aumentar seu cacife diante do poderio econômico e comercial americano, através da sonhada unidade dos países do continente. Se a tentativa de integração regional vai surtir efeito, só o tempo dirá. O fato é que FHC atraiu os refletores do mundo todo ao promover com toda a pompa, em Brasília, o primeiro convescote dos governantes sul-americanos em quase dois séculos. Mas um ingrediente que não estava previsto no cardápio original do jantar sul-americano acabou se transformando no prato principal: o explosivo Plano Colômbia, alimentado militarmente por Washington sob o argumento oficial de que será para combater o narcotráfico, mas que, na verdade, carrega um baú de interesses econômicos e políticos. Um deles é o de tentar derrotar as duas guerrilhas de esquerda que há 36 anos estão entrincheiradas nas montanhas da Colômbia e já dominam 40% do país.

Reuters
Isolado, Pastrana recebe o apoio
de Bill Clinton..

A edição de quarta-feira do influente The New York Times trouxe um artigo que inflou mais ainda o ego presidencial, sob o título: “Brasil assume o papel de líder nos assuntos latino-americanos.” O encontro pode ter servido apenas como cena para uma histórica foto de álbum de família. Mas também poderá sinalizar o nascimento de um novo jogador, a América do Sul, nas intrincadas relações internacionais, onde quem dá as cartas são os países ricos, principalmente os Estados Unidos, que ditam suas regras no tabuleiro econômico e comercial através do FMI e da Organização Mundial do Comércio. “Com a crise do Mercosul, o governo brasileiro está se preparando para possibilidades alternativas de atuação nas negociações internacionais. Mas os interesses de cada país são variados e o poder econômico dos americanos é muito forte, o que dificulta ao Brasil exercer o papel de líder regional”, observou o cientista político Tulo Vigevani, do Instituto de Estudos Avançados da USP.

Leopoldo Silva
… mas ouve críticas
de Hugo Chávez ao Plano Colômbia

Diante do fantasma de uma vietnamização da Colômbia, os países sul-americanos protestaram e alguns, como o Brasil, anunciaram que vão reforçar suas fronteiras com o país governado por Andrés Pastrana. O polêmico presidente da Venezuela, Hugo Chávez, chegou a propor a criação de uma organização político-militar na América do Sul ao estilo da Otan. O assunto, que já dominava o noticiário há algumas semanas, pegou fogo com a visita do presidente Bill Clinton à Colômbia justamente na véspera da reunião convocada por FHC. “Não podemos esquecer que há uma campanha eleitoral em curso nos Estados Unidos e Clinton precisa mostrar serviço no combate ao narcotráfico para eleger o seu candidato (o democrata Al Gore). Mas a solução para a Colômbia está na negociação de paz e não nas armas”, opinou o professor de Ciência Política da Universidade de Brasília David Fleischer.

Protestos – O drama colombiano mobilizou 750 artistas e escritores de 150 países, que enviaram uma carta aberta a governantes de todo o mundo criticando a doação militar americana ao país por considerar que esse gesto vai prolongar a guerra. Na Colômbia, onde passou oito horas na turística cidade de Cartagena, na quarta-feira 30, Clinton, que foi alvo de protestos durante sua visita, apelou aos presidentes sul-americanos para que respaldem o Plano Colômbia. “A Colômbia não é o Vietnã”, disse. Seguindo uma máxima americana segundo a qual com dinheiro se resolve qualquer problema, Clinton prometeu arranjar mais “plata” para os países vizinhos que vierem a sofrer consequências do acirramento da guerra na Colômbia, como a fuga de camponeses, a migração de guerrilheiros, narcotraficantes e das plantações de coca para as regiões de fronteira. A perspectiva de uma guerra militar, química e biológica no Sul da Colômbia, com a possibilidade de uso de fungos para combater as plantações de coca e de papoula, assombra a América do Sul. Se os países do continente têm interesses comerciais e econômicos variados, pelo menos na questão colombiana o temor os une.

Tráfico – Orçado em U$ 7,5 bilhões, o plano vai receber dos Estados Unidos US$ 1,3 bilhão nos próximos meses, dinheiro que será aplicado maciçamente no aparato militar, incluindo a compra de 60 helicópteros, vendidos por empresas americanas, é claro. Não é à toa que os Estados Unidos pretendem deslocar um de seus generais para supervisionar a aplicação do dinheiro, segundo o jornal americano Miami Herald. Todo cuidado é pouco quando o assunto é dinheiro e narcotráfico. Afinal, o governo americano sofreu um duro golpe moral em agosto do ano passado, quando Laurie Hiett – mulher do ex-chefe de operações contra o narcotráfico dos Estados Unidos na Colômbia, o coronel James Hiett, que comandava 200 homens – foi presa, por traficar heroína de Bogotá para Nova York. Para piorar as coisas, descobriu-se que ela utilizava nada mais nada menos do que o correio da embaixada americana na Colômbia para seus lucrativos “negócios”. O coronel jurou que não sabia que sua mulher era traficante de heroína, mas vai pegar cinco meses de prisão, acusado de ter usufruído do dinheiro proveniente das atividades ilegais de Laurie.

 

André Dusek
Luiz Felipe Lampreia, ministro das Relações Exteriores

Ao injetar verbas para o Exército colombiano, acusado de estar ligado a grupos paramilitares que promovem massacres de civis, Clinton foi criticado por entidades como Anistia Internacional e Human Rights Watch. As organizações de defesa dos direitos humanos afirmam que dos cerca de 400 massacres por ano, 300 deles são realizados pelos paramilitares. Os defensores do controvertido plano sofreram um duro golpe no dia 15 de agosto, quando seis meninos com idades que variavam de seis a 11 anos foram mortos por tropas do próprio Exército colombiano, quando faziam uma excursão ecológica no Estado de Antioquia. Diante do inexplicável, os militares alegaram que os confundiram com guerrilheiros. Mas, em nome dos interesses da segurança dos Estados Unidos, o presidente Clinton decidiu liberar a verba sem que o governo Pastrana tivesse cumprido as condições estabelecidas pelo Congresso Americano, a maior parte delas ligadas à questão dos direitos humanos.

Roberto Jayme
David Fleischer, professor de Ciência Política da UnB

Os ânimos se acirraram nos últimos dias, depois que os vizinhos começaram a reclamar. O ministro das Relações Exteriores do Brasil, Luiz Felipe Lampreia, por exemplo, colocou lenha na fogueira ao afirmar, numa entrevista ao jornal argentino Clarín, que o acirramento do conflito representa uma ameaça ao território brasileiro, com o possível ingresso de militares colombianos para realizar operações contra a guerrilha, o que já ocorreu antes. Além disso, Lampreia previu que a guerra vai se intensificar em janeiro do ano que vem. Preparando terreno para a polêmica que o assunto causaria na reunião dos presidentes sul-americanos, representantes do governo brasileiro fizeram uma verdadeira ofensiva na mídia, externando a preocupação do País com o Plano Colômbia em artigos e entrevistas concedidas para os jornais e agências de notícias nacionais e internacionais

O subsecretário para Assuntos Políticos do Departamento de Estado americano Thomas Pickering contra-atacou. “Os que falam contra o plano não oferecem alternativas a não ser deixar que os problemas destruam a Colômbia, com a esperança de que estes não cheguem a seus países. Se acreditam que isso vai acontecer, devem acreditar também em conto de fadas”, rebateu. Pastrana – que já estava contrariado com a atitude de Fernando Henrique de convocar a reunião, por acreditar que ela acabaria se transformando num palanque contra o Plano Colômbia – exigiu respeito ao seu projeto de combate às drogas. Num recado a seus colegas, Pastrana afirmou que a visita de Clinton a seu país era uma demonstração de que ele não estava mais sozinho.

Numa reunião com FHC na terça-feira 29, o ministro da Defesa, Geraldo Quintão, jogou um balde de água fria nos argumentos que os americanos vêm utilizando para pressionar o governo brasileiro a se envolver no conflito. Quintão afirmou que a área militar não acredita no avanço significativo dos guerrilheiros na fronteira do Brasil com a Colômbia por causa da dificuldade de circulação na selva amazônica. Além disso, foi considerada improvável a possibilidade de transferência da plantação de coca para o território brasileiro, já que o solo da região não é compatível com este cultivo. Até agora o Brasil vem se destacando na batalha verbal travada no continente contra o lobby do Tio Sam para que soldados sul-americanos se envolvam no lodaçal colombiano. Mas para exercer um papel de liderança regional, o governo brasileiro deveria dar mais um passo, encabeçando os esforços de paz na Colômbia, como fez o México em relação aos conflitos na Guatemala e em El Salvador.

Um lugar ao sol

 

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O encontro de Brasília é a primeira reunião de todos os presidentes dos 12 países da América do Sul e talvez a última oportunidade para esta parte do mundo conquistar um lugar ao sol no mundo globalizado. Diante das superpotências econômicas, a América do Sul é pequena, mas não irrelevante. Com 4,8% da produção mundial bruta, mais que a China, estaria em posição de ser o fiel da balança entre os dois maiores blocos comerciais – Tratado de Livre Comércio da América do Norte (Nafta) e União Européia. Porém, sua participação total nas exportações mundiais, apenas 2,3%, é pouco maior que a da África, menor que a da Coréia do Sul e cai cada vez mais.

Ninguém nega ser preciso mudar nossas condições de inserção no mercado mundial, mas como? Os EUA propuseram a integração da América do Sul numa Associação de Livre Comércio das Américas (Alca), essencialmente uma ampliação do Nafta. Produtos americanos entrariam na América do Sul livres de tarifas e vice-versa. Para alguns, como o presidente do Uruguai, Jorge Battle, não há outra saída: “A única forma de crescer é associando-nos a um país do Primeiro Mundo… ou nos juntamos com a Alca ou não saímos na foto.”

Há quem diga que o México entrou nesse jogo e se saiu bem, mas nem todos os mexicanos concordam: segundo o cientista político Jorge Castañeda, assessor do presidente eleito Vicente Fox, a participação dos salários na renda do México caiu de 38% para 18%. Mesmo sendo vizinho dos EUA, o que cria uma relação estratégica muito especial e favorece o desenvolvimento de “maquiladoras”, indústrias que aproveitam a barata mão-de-obra mexicana para montar e embalar kits produzidos nos EUA e reexportá-los para seu país.

As empresas dos EUA não precisam de “maquiladoras” na América do Sul, mas não desprezam seu potencial para absorver produtos americanos. No rombo crescente do comércio exterior dos EUA, já caberiam com folga todas as importações do Japão. Embora as aplicações financeiras de outros países no mercado americano ainda sejam suficientes para equilibrá-lo, seria saudável contê-lo ou pelo menos desacelerar seu crescimento. Os únicos países com que os EUA conseguem superávits significativos (além da Austrália) são os sul-americanos, principalmente Brasil e Argentina, e o livre comércio seria uma forma segura de ampliá-los: estudo do Ipea divulgado em abril sugere que as exportações dos EUA para o Brasil cresceriam mais de 60% e as do Brasil para os EUA menos de 30%. Os cerca de US$ 10 bilhões de importações adicionais de produtos americanos que o Brasil absorveria tirariam mercado não só das indústrias brasileiras, como também dos outros parceiros comerciais do Brasil: o mesmo estudo prevê uma queda de 3,1% nas nossas importações de países do Mercosul. A América do Norte passaria de 27% para 36% do comércio exterior brasileiro e mais ainda do de nossos vizinhos. Dependeríamos mais unilateralmente da superpotência americana, cuja influência é hoje parcialmente contrabalançada através do comércio e investimento com Europa, Ásia e América Latina.

Mas o governo do Brasil tem insistido em que a integração dentro do Mercosul e do Mercosul com a Comunidade Andina vêm antes da Alca e que a Alca não é necessariamente mais prioritária que o livre comércio com a União Européia. Como escreveu há alguns anos o sociólogo francês Alain Touraine, a proposta de união política e econômica entre países sul-americanos é a única resposta original a essa perspectiva e o Brasil é o único país do continente com condições concretas de levar adiante uma política autônoma e liderar a concretização dessa aliança.
O desafio para o governo brasileiro é persuadir seus vizinhos de que não quer transformá-los em subcolônias de um subimpério brasileiro e sim articular o interesse comum a todos os sul-americanos de evitar a incorporação à economia americana em condições que nos condenariam à irrelevância. Ficaria mais convincente se, internamente, a política econômica do governo brasileiro fosse mais coerente com a vontade de autonomia implícita no discurso do presidente e do Itamaraty. Se os ministros continuarem falando de dolarizar tarifas de energia, exigindo que decisões do Judiciário sejam condicionadas pela preocupação de não aborrecer os investidores estrangeiros e organizando seminários sobre política econômica do Brasil, em território nacional, falados somente em inglês, fica difícil liderar um projeto de independência econômica regional.
Antonio Luiz Monteiro Coelho da Costa