Quando criança, Trudi Montag costumava se dependurar no batente das portas até ficar com os braços e ombros amortecidos pela dor. Queria esticar-se, acabar com a diferença que a tornava uma eterna excluída entre os moradores da pequena Burgdorf, fictícia cidade alemã criada pela escritora Ursula Hegi. Protagonista do romance Pedras do rio (Record, 542 págs., R$ 50), Trudi não demora a constatar que o esforço físico jamais vai alterar nenhum centímetro de sua constituição de anã. Aos poucos, porém, aprende a tirar proveito da própria diversidade. Discriminada, Trudi aguça sua capacidade de observação e de arrancar os segredos mais íntimos das pessoas. Acaba se transformando na historiadora não-oficial de Burgdorf, espécie de consciência crítica do conturbado período entre 1915 e 1952, englobando as duas guerras mundiais e todos os horrores da Alemanha nazista. Ela, que desde cedo havia percebido que as diferenças podem ser compartilhadas, adquire um papel de destaque na comunidade devido à sua aptidão em lidar com informações.

Com o tempo, nenhum drama individual ou coletivo dos moradores de Burgdorf passa despercebido ao olhar devassador de Trudi. Em compensação, sua coragem revela-se grandiosa. Tanto esconde judeus perseguidos pelos nazistas quanto impede que as histórias de adesão ao III Reich e de omissão diante do terror sejam modificadas depois do final da guerra. Os reflexos do nazismo, em determinado momento, começaram a perseguir a autora Ursula Hegi. Nascida na Alemanha, ela mudou-se para os Estados Unidos aos 18 anos, mas na maturidade viu-se compelida a revolver a herança de seu país de origem. Pedras do rio guarda esta intensidade, com jatos de emoção e combatividade numa leitura bastante fluida.