Cheia de ginga, a batida eletrônica faz marcação para o canto-falado do rapper Dog Jay, que enreda o ouvinte com sua métrica afiada. “Clic, Clec, bum! Mãos para o alto!/ Não se preocupe, isto não é um assalto./ É o som que bate alto.” A letra direta e provocativa de 4 mallokeros é o cartão de visitas do grupo de rap Doctor MC’s, que na próxima semana lança o álbum Mallokeragem zona leste pela BMG. Com o aval da gravadora multinacional, o quarteto de São Paulo, enfim, despede-se do gueto ao qual ficou encerrado por mais de uma década e se prepara para conquistar o País. Os quatro integrantes do Doctor MC’s, contudo, não estão sozinhos. A desenfreada corrida da indústria fonográfica em direção ao rap tem um nítido objetivo. Seus executivos já perceberam o potencial comercial do som desta rapaziada. Antes relegado aos selos de fundo de quintal e às festas da periferia, o rap invadiu as pistas dos clubes paulistanos frequentados pela jovem classe média em noites dedicadas ao ritmo, ganhou espaço no rádio e na televisão e é assunto de pelo menos quatro revistas especializadas. Demorou, mas agora ninguém segura. O rap é a grande aposta musical do momento.

Ricardo Giraldez
Racionais mc’s: um milhão de CDs num selo independente, mesmo com o eterno marketing do mau humor em relação à mídia

Esqueça a prosa bem-humorada do carioca Gabriel O Pensador, que se impôs com uma versão mais pop deste estilo essencialmente urbano, surgido nos Estados Unidos nos anos 70 sob a expressão rhythm and poetry (ritmo e poesia), por trazer letras quilométricas amparadas pelo balanço da música negra. O fenômeno hoje em maior evidência amplificou as vozes dos excluídos das grandes cidades e, aos poucos, conquistou seu canal de expressão. Para alegria dos fãs antigos e de última hora, nos próximos meses estão sendo lançados vários discos do gênero. Bandas como o Pavilhão 9, de São Paulo, e o DJ Jamaika, de Brasília, concluem seus trabalhos pela Warner Music. Junte a eles o novo álbum dos veteranos Thaíde & DJ Hum e a aguardada volta do maior expoente do rap, os Racionais MC’s – que com o CD Sobrevivendo no inferno atingiu a marca de um milhão de cópias vendidas –, para se ter um bom mapeamento do gênero.

Tá ligado?
Pequeno glossário
de gírias do mundo rap
Dar a letra – contar a história
Fazer a rima – passar a mensagem
Ferro – revólver
Fita forte – roubo
Gaiola – cadeia
Gambé – policial
Na fita – estar em destaque
Proceder – caráter
Truta – amigo
Tá ligado – entendeu

Crônica da pobreza – Antes associado ao mundo do crime, o rap se transformou numa crônica da pobreza metropolitana. Claro que muitas das letras, ao querer ser politizadas, fazem apologia à violência. Mas nem todos militam da mesma forma. A cultura hip hop, da qual o rap é a caixa sonora, também gosta de diversão e arte e muita falação. Doctor MC’s, assim chamado por terem doutorado na realidade das ruas, é um destes porta-vozes. “Sabemos tudo de ruim e de bom da periferia”, afirma o vocalista MCA, 29 anos, técnico em contabilidade, cujo nome real é Claudio dos Anjos. Morador da Vila Nhoconé, nos confins da zona leste paulistana, ele formou seu grupo em 1986 com os amigos Dog Jay, 28 anos, do bairro vizinho de Cangaíba, e Smokey D, 30, do Parque Santa Madalena. Neste período só conseguiram lançar dois discos pelo selo independente Kaskatas. Mesmo sem o menor esquema de divulgação, venderam mais de 70 mil cópias de Agora a casa cai, de 1998, cifra equivalente à de bandas pop como a mineira Patu Fu. “No início, o rap era boicotado pelas gravadoras e pela imprensa. Diziam que era música de bandido”, desabafa MCA.

Pelo visto, os fatos mudaram. Não por acaso, o disco dos Doctor MC’s teve produção de Dudu Marote, figura carimbada no acabamento dos supersucessos do grupo mineiro Skank. “Masterizamos o disco em Nova York com Tom Coyne, o mesmo que assina a quase totalidade dos grandes artistas de hip hop dos Estados Unidos. O resultado ficou de gente grande”, orgulha-se Marote. Já era tempo de os rappers terem bom tratamento. Tom Capone, diretor artístico da Warner Music, adianta que as músicas do Pavilhão 9 e do DJ Jamaika vão tratar do lado mais bacana da periferia. “O que não quer dizer que os grupos estejam amolecendo. Eles continuam agulhando”, diz Capone. Desde a explosão dos Racionais MC’s, que há algum tempo já romperam as fronteiras periféricas, a investida no rap já era esperada. Apesar de assediado pelas grandes gravadoras, o grupo do violento bairro do Capão Redondo, na zona zul de São Paulo, preferiu continuar no selo próprio, o Cosa Nostra. Há seis meses, entretanto, o quarteto aceitou ser distribuído pela gigante Sony Music. Mas continuam fazendo o marketing “raiva dos burgueses”. Seu líder, o emburrado Mano Brown, não dá entrevistas, não gosta de ser fotografado nem permite que sua “assessora” passe qualquer informação.

 

Ricardo Giraldez
Drica, apresentadora do programa Clipper: no lugar de pagode e axé o público tem preferido os clipes de rap

Primo Preto, irmão do titã Branco Mello e coordenador artístico do selo Black Groove, que coloca no mercado os discos dos Racionais, diz que a turma formada por Mano Brown, Ice Blue, Edy Rock e KL Jay foi mais uma vez pioneira ao fazer um acordo com a Sony. “Agora as pessoas vão achar o disco dos Racionais até em Manaus.” Aos 25 anos, Primo Preto é um autêntico agitador do movimento hip hop, a chamada cultura de rua. Além de cuidar do Black Groove, ele acaba de criar a grife Rapsoulfunk!, especializada naquelas roupas hiperlargas usadas pelos manos – forma como os jovens paulistanos de periferia se tratam. Preto também promove três noites voltadas para o ritmo em locais badalados da capital paulista como o U-Turn (terças-feiras) e o Blen Blen Club (aos sábados). Quem exibia as belas formas no Blen Blen Black do sábado 26 era a promoter Silvia Dias, 19 anos, moradora do Brooklyn, zona sul de São Paulo. “As letras do rap tratam da realidade que estamos vivendo. Convivo diariamente com a violência e não vai ser uma música que vai me chocar.”

Divulgação
Cena de O rap do Pequeno Príncipe: cultura hip hop no cinema

Politizado – Não são todos, porém, que pensam assim. O grupo Facção Central teve seu clipe de Isso aqui é uma guerra, do assombroso álbum Versos sangrentos, apreendido pelo Grupo de Atuação Especial de Repressão ao Crime Organizado (Gaeco), por ser considerado uma apologia ao crime. O estilo mais politizado ocupa grande parte do programa Yo! MTV rap, comandado por KL Jay, DJ dos Racionais, nas madrugadas de terça-feira. Outra atração que tem se voltado para o ritmo é o Clipper, apresentado por Drica Lopes na TV Gazeta, de segunda a sexta, às 18h. “Antes pediam muito pagode e axé, agora a preferência pelo rap cresceu”, testemunha ela. Entre os mais pedidos está Só os fortes, da dupla de detentos 509-E e Apresento meu amigo, de Thaíde & DJ Hum, faixa do ótimo álbum recém-lançado Assim caminha a humanidade.

Altair Gonçalves, o Thaíde, 32 anos, morador do bairro paulistano de São João Clímaco, cria suas rimas inspirado em experiências próprias e nas dos amigos. “Muita gente acha que para escrever letras como esta tem que se estar de porta fechada, fugindo da polícia. Procuro retratar o que as pessoas estão passando.” Com uma carreira de 15 anos, Thaíde & DJ Hum já lançaram seis álbuns, mas só agora estão recebendo a atenção merecida. Há um ano no cast da gravadora Trama, a dupla é uma grande aposta de vendas. Assim caminha a humanidade saiu com 50 mil cópias e a perspectiva é que venda o dobro. De olho no mercado, até o final do ano a Trama vai colocar na praça mais dez títulos. A intenção é trabalhar em parceria com os pequenos selos já existentes como o 4P, do rapper Xis, também conhecido como Preto Bomba. Vencedor do melhor clipe de rap no Video Music Brasil de 2000, da MTV, Xis – nascido Marcelo Santos, “mais de 20 anos” – é outro hit entre os amantes do gênero com a música Us manos e as mina. Relato dos agitos de Itaquera, zona leste de São Paulo, a música tem um refrão preciosíssimo, mas com apelo de torcida de futebol: “Us mano pow!/as mina pá!”

Max G Pinto
D2, do Planet Hemp: o vocalista acha que o ritmo tem o mesmo papel do samba

Na capa do disco Seja como for, Xis aparece engatilhando uma arma em primeiro plano, mas ele garante que não incita o crime. “Não estou pagando de bandido, estou dando um aviso. Estes moleques de rua de oito anos, que deveriam estar na escola, nasceram num governo que a gente poderia ter dito não. Aos 25 anos, se eles sobreviverem, estarão apontando arma para todo mundo.” O músico João Marcelo Bôscoli, presidente da Trama, não aplaude a capa nem as letras muitas vezes machistas e homofóbicas dos grupos de rap. Afirma, contudo, que não exerce a censura. Bôscoli diz que já chegou a receber mais de 100 fitas de novos grupos. “Hoje tem tanta banda de rap como nos anos 80 tinha de rock. Foram eles que criaram o movimento, não a indústria.”

Ricardo Giraldez
João Marcelo, da Trama: explosão
do estilo lembra o auge do
rock nos anos 80

Para se ter uma idéia do tamanho da onda, foi graças à divulgação do rap que a Rádio Notícias (105 FM), de Jundiaí, está há sete meses liderando a audiência da Grande São Paulo, das 18h às 19h. É quando acontece o programa Espaço rap, apresentado por Nuno Mendes. Calcula-se que só na capital paulista existam mais de 500 grupos. Mas o ritmo tem representantes de Norte a Sul. No Rio de Janeiro, desponta o “soldado do morro” MV Bill; em Porto Alegre, Da Guedes e Piá; em Florianópolis, Código Negro; em Brasília, GOG, Álibe, X e DJ Jamaika, os dois últimos saídos do extinto Câmbio Negro. Mas, uma das bandas mais originais no cenário nacional é a pernambucana Faces do Subúrbio, que mistura rap e embolada no CD Como é triste de olhar, lançado em agosto pela Universal Music. Alexandre Garnizé, 26 anos, baterista do grupo, participa do documentário O rap do Pequeno Príncipe contra as almas sebosas, de Paulo Caldas e Marcelo Luna, que está na exibição paralela da Mostra Internacional da Arte Cinematográfica de Veneza. Na fita, os diretores tentam apontar a função social do rap que hoje, de acordo com Marcelo D2, vocalista do Planet Hemp, exerce o mesmo papel do samba de antigamente nas favelas. “O mais legal é que o moleque não precisa entrar numa escola para compor. Basta gostar de música.” E ter muito balanço e a língua solta.

Vozes que vêm das celas
Alan Rodrigues
509-e: o horror nas rimas

Depois dos detentos do Rap, mais um grupo rompe as muralhas do Complexo do Carandiru, em São Paulo. Trata-se do 509-E, formado pelos rappers Dexter e Afro-X, ambos com 27 anos, e, coincidentemente, amigos de infância em São Bernardo do Campo. Lançado em junho, o disco de estréia da dupla, Provérbios 13, fala do passado violento, do horror da prisão e do sonho de liberdade. "Rap para nós é a revolução através das palavras", determina Afro-X, cujo nome artístico se refere ao líder negro americano Malcom X. Dexter se inspirou no filho de Martim Luther King. "Queremos conscientizar as pessoas, fazê-las enxergar o detento de outra forma porque ele é capaz de se recuperar sim", completa Dexter. O Ótimo CD da dupla é o primeiro passo.