Na casa de taipa e chão batido, o pequeno Jackson, dois anos, caminhava alegre de um lado para outro agarrado a um pacote de bolacha. Sorria sem parar. Havia um mês, o menino e outros oito moradores do casebre comiam apenas restos de arroz e angu. Naquele dia, a mãe de Jackson, Maria Genilda Evangelista, 30 anos e seis filhos, conseguiu trazer para casa um pouco de feijão, biscoito e rapadura, doados por comerciantes do município de Quixadá, a 165 quilômetros de Fortaleza (CE). Maria, que acabava de dar à luz Darliane, com apenas cinco dias, integrava o grupo de 370 agricultores que permanecia acampado na sede do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Quixadá. Os camponeses, vítimas da seca, perderam totalmente suas lavouras e não tinham o que comer. “A gente ia morrer de fome, não fosse a comida que dão para nós na cidade. Mas fico desesperada, pois deixo os filhos em casa por mais de uma semana e nem sei como eles sobrevivem”, lamenta Maria, separada do primeiro marido e recentemente abandonada também pelo pai de Darliane. “Estou aflita. Dois dos meus meninos estão com febre e sempre com dor de cabeça”, diz Maria. A bolacha e a rapadura, pelo menos, alegraram Jackson naquele momento.

No distrito de Suíça, em Canindé, a 110 quilômetros da capital cearense, o agricultor Francisco Euzébio Pereira, 55 anos e seis filhos, conta que, na região, ninguém ganha nem R$ 0,50, há quatro meses. “O feijãozinho que a gente plantou morreu logo. Vivemos escapando da morte e só Deus sabe o que será de nós”, conforma-se. Na comunidade Barra do Bento, Roque de Souza, 50 anos e cinco filhos, também sobrevive “graças à misericórdia de Deus”, segundo suas palavras. “A gente come farinha seca com água e vai dormir. Não tem outro jeito”, afirma, resignado. Para tentar amenizar o sofrimento, Francisco e Roque, junto com outros 500 lavradores, acamparam no prédio da Prefeitura de Canindé durante vários dias a fim de pressionar autoridades do Ceará e do governo federal. Contaram com a ajuda do Movimento dos Trabalhadores Sem-terra (MST). Com o grupo, empunhando enxadas, cantaram a música Asa branca, de Luiz Gonzaga, em frente ao prédio do Executivo. “Estamos reivindicando uma frente de trabalho. Só a cesta básica que o governo manda é vergonhosa. Não dá para nada”, reclama Sérgio Pinto, da coordenação estadual do MST no Ceará. “A área rural de Canindé tem 170 comunidades, com mais de dez mil moradores. Para atender toda essa população, o governo do Estado mandou 122 cestas básicas. Faltaram ainda 40 para que cada comunidade ficasse com uma. Isso é piada. Estamos revoltados”, protesta Sérgio.
 

Seca verde – Há previsões de especialistas de que a seca no Nordeste pode se prolongar até 2005 ou 2007. A falta de chuvas durante o inverno já afetou 600 dos 1.785 municípios nordestinos, que estão em estado de calamidade pública ou situação de emergência. Os Estados mais prejudicados são o Ceará, Pernambuco, Piauí, Sergipe, Rio Grande do Norte e a Paraíba, além do norte de Minas Gerais e do Espírito Santo. Hoje, quem segue de Fortaleza em direção ao sertão cearense apenas por rodovia não consegue ter a dimensão exata da gravidade da seca. No momento, é a chamada seca verde que aflige o nordestino. O inverno na região é caracterizado pela presença de chuvas. Sem elas, as plantações mantêm suas folhas verdes, mas não sobrevivem. Os rios e os açudes também ficam secos. Os agricultores perdem toda a produção. A estiagem nos próximos meses deve piorar e estima-se que 800 cidades nordestinas, no mínimo, venham a ser atingidas. “Plantamos o milho em fevereiro, mas perdemos tudo”, queixa-se Nilza Barbosa, do povoado de Custódia, em Quixadá, ao lado dos filhos Maique e Milene.

É difícil entender por que não se consegue ao menos amenizar o problema da seca no Nordeste. Afinal, hoje existem recursos tecnológicos para fazer previsões, com muita antecedência, de falta ou excesso de água em qualquer região. Em locais áridos, deveriam ser criados mecanismos para reduzir os efeitos do problema. “São necessárias propostas permanentes de combate à seca, como a construção de barragens submersas e poços tubulares (que atinjam lençóis d’água profundos), além de programas de capacitação para os trabalhadores e também de renda mínima”, sugere Manoel Cândido da Costa, presidente da Federação dos Trabalhadores na Agricultura do Rio Grande do Norte.

Bolsa-renda – Sem nehum planejamento, a tragédia se repete. No ano passado, o governo federal deixou de investir mais da metade do dinheiro destinado no Orçamento da União – R$ 489 milhões – a três programas básicos de combate à seca. Os recursos estavam previstos para investimentos no Departamento Nacional de Obras contra a Seca (Dnocs) e nos programas Pró-água e Irrigação e Drenagem. Agora, o governo federal vai implantar um programa de bolsa-renda para atender 600 mil trabalhadores rurais. Cada um deve receber R$ 60. Os sindicatos de trabalhadores rurais reivindicavam a ajuda para dois milhões de famílias do Nordeste. Para o ministro Raul Jungmann – que assumiu mais uma pasta emergencial no governo Fernando Henrique, a da seca –, essas medidas serão suficientes para amenizar o problema. Jungmann admite, entretanto, que o envio de cestas e de carros-pipa é sinal de uma política “que não deu certo”.

Os trabalhadores reclamam das propostas. “O governo do Ceará também se propõe a indenizar quem plantou cinco hectares e teve perda de safra superior a 60%. O programa começa em agosto. Mas muitos agricultores que nem conseguiram plantar ficarão excluídos. O chamado meeiro, que planta e divide a safra com o proprietário, também fica de fora”, reage Luiz Henrique de Oliveira, presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Quixadá. “Decidimos não aceitar as cestas do governo porque são em quantidade irrisória. Somente no distrito-sede de Quixadá temos cinco mil habitantes, além de um grande número de agricultores na periferia, e a área vai receber apenas 52 cestas.” Quixadá também sofre, no momento, com a escassez de água na barragem do Cedro, construída pelos ingleses em 1890. Até há dez anos, a barragem poupava a cidade dos efeitos da seca.

Saques – Enquanto o quadro se agrava, os trabalhadores respondem com manifestações, ocupação de prédios de prefeituras e saques a caminhões nas estradas. Em Irauçuba, uma das áreas mais secas do Ceará, a 140 quilômetros da capital, quatro mil agricultores interditaram a BR-222, que vai para o Piauí. Em Quixadá, os trabalhadores invadiram um depósito da Secretaria de Educação do município, mas só encontraram produtos de limpeza. Em Tauá, a 364 quilômetros de Fortaleza, os saques começaram em maio. No último, há 15 dias, foram levados 150 sacas de arroz de um caminhão. Na rodovia BR-20, também em Tauá, as irmãs Erilene, 12 anos, Elenice, seis, e Elismar, oito, passam a maior parte do dia em pé, no asfalto e sob o sol, pedindo ajuda aos motoristas. Chegam a ficar oito horas na estrada, sem conseguir um centavo sequer. “Não tiramos nada na roça este ano. Tenho oito filhos e a gente vive hoje com o que as pessoas nos dão”, diz a mãe das meninas, Antonia de Araújo. A pequena Elismar fica sentada no asfalto, o tempo todo, com uma cartilha na mão. Em Ibaretama, a 120 quilômetros da capital, a população compra água de um caminhão-pipa particular a R$ 1 o tambor. “O açude próximo secou. Só dá para tirar água para os animais”, conta Vera Lúcia Lima, 50 anos e seis filhos. “Às vezes, a gente dá um balde d’água para as pessoas. Não dá para dizer não”, garante o dono do caminhão, Claudemir de Lima, 21 anos, que tem um açude nas terras da família. O problema da seca no Nordeste é o mesmo desde a época do Império. Infelizmente, as intervenções feitas até hoje também são as mesmas. Sem nenhum resultado.